segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

Antecipações

Antigamente uma das boas vantagens de ser um teórico, professor e pesquisador, e não um jornalista, é que ao contrário deste último eu poderia gastar meu tempo e me debruçar sem culpas ou críticas sobre o que não é e pode nem vir a ser notícia. Aquilo que simplesmente ainda não aconteceu, e que muitas vezes nunca acontece (desnecessário dizer o quanto o jornalismo mudou; tanto que muitos dos nossos profissionais de imprensa hoje se sentem perfeitamente livres para contrariar essas velhas regras do métier...).
Com relação à tão discutida – e frequentemente lamentada – atual reforma ministerial, por exemplo, gostaria apenas de lembrar algumas noções básicas que podem ajudar a entender não exatamente as escolhas já feitas pela presidente e sua entourage – longe de mim! –, mas ao menos questionar os porquês de tantas acusações ou elogios, tantas decepções e antecipações, confiantes ou catastróficas – assim como explicitar as razões que me levam a não tomar muito a sério nem umas nem as outras.
Existem básica e teoricamente três objetivos que guiam ou deveriam guiar a formação de um ministério e a ocupação de cargos públicos de primeiro e segundo escalão; particularmente numa democracia com as características do sistema político brasileiro contemporâneo: 1) levando-se em conta a diversidade e abrangência das funções e áreas de atuação do Estado contemporâneo, e a consciência prudente de que é impossível – e pouco recomendável – tentar obter sucesso em todas elas, em especial ao longo apenas de um mandato fixo de quatro anos (e que para ser renovado por mais quatro, terá de apresentar resultados em prazo relativamente curto), a primeira função da montagem dos quadros deverá ser atender às metas prioritárias fixadas pela estratégia geral do governo em questão, colocando-se nos postos-chaves as pessoas que, teoricamente, melhor poderão dar conta de cumprir tais prioridades; seja por seu compromisso com elas, pelas atribuídas qualidades técnicas de tais indivíduos, por suas imagens públicas, por sua vinculação com grupos de poder estratégicos, ou por qualquer combinação de alguns ou todos estes atributos; 2) em paralelo, ou em seguida, cabe utilizar as nomeações como elemento de costura das alianças e apoios partidários no Congresso Federal, mas também nos estados, já que a formação e o cuidado permanente com as coalizões é essencial para tocar o dia a dia do governo; 3) finalmente, é preciso levar em conta, na composição dos gabinetes, os vínculos do governo com a Sociedade Civil, trazendo nomes que possam facilitar o diálogo com setores considerados importantes. E sem esquecer, é claro, o fato de que o atendimento razoável de tais objetivos é sempre dependente da oferta geral de quadros administrativos – técnicos e políticos – à disposição dos artífices da ocasião.
Em tese  sempre se pode imaginar que em alguns casos particularmente felizes se poderia ocupar idealmente os cargos mais estratégicos com os melhores quadros disponíveis, tanto de um ponto de vista “técnico” quanto político (e em ambos os sentidos acima mencionados do termo). Atendendo assim a todos os objetivos principais de uma só tacada.
Mas qualquer pessoa que acompanhe a política (ou a vida) com um pouco mais de atenção e experiência sabe que isso é simplesmente impossível. Não somente porque um objetivo pode entrar em contradição com outro (e o ‘xis’ da política é justamente conseguir administrar – o que não é exatamente o mesmo que “resolver” – esse tipo de contradição). Nem porque propriamente, ao contrário, se trate de uma questão de carência de pessoas com tal polivalência, ou, como se diz, por absoluta falta de “material humano” (o que também se houve com frequência; com doses equivalentes de arrogância e ignorância política). Não.
É impossível se garantir o preenchimento de modo razoavelmente satisfatório de tais funções, atingindo objetivos tão importantes, porque de saída isso simplesmente pressupõe um acordo mesmo que mínimo sobre metas e estratégias gerais de governo, mas também de prioridades, táticas e timing de cumprimento de tarefas, etapas e pré-requisitos. Ou seja: só posso dizer que fulano ou sicrano é o nome perfeito para determinado cargo – ou, inversamente, que é o pior – se eu souber quais as expectativas que o próprio governo tem para tal função, no contexto mais amplo de suas estratégias. Qualquer especulação para além disso é mera projeção minha sobre quais deveriam ser tais metas e estratégias, e qual o perfil ou indivíduo que idealmente – ou arbitrariamente (em geral dá no mesmo) – considero mais talhado para isso. Pode ser muito bom para o ego, para marcar posição, ou simplesmente um exercício mental divertido de se fazer, mas em geral é rigorosamente irrelevante para a compreensão efetiva do processo.
Ora, admita-se, por hipótese, que o próprio governo possa ter total clareza e controle sobre tal complexo (o que, de minha parte, sem demérito nenhum para este ou qualquer outro governo, eu sempre duvido). Como é que nós, observadores, que não possuímos nem uma ínfima parte da informação que cabe aos eleitos, não estamos submetidos às pressões que estes enfrentam (ainda bem!), nem, na maioria esmagadora dos casos, podemos privar de acesso privilegiado a suas intimidades ou oráculos, poderemos não somente avaliar com um mínimo de objetividade os seus possíveis erros e acertos neste campo, quanto mais antecipar seus futuros desempenhos?
Eu entendo, claro, que a escolha de ministros e quadros governamentais pode ser bem mais importante para o futuro e os interesses particulares de muita gente bem informada. Bem mais dramático do que a escalação da seleção.
E no mais, o choro é livre, assim como as artes da crítica, da pressão política, da especulação, e o direito a dar pitacos, ou bancar a pitonisa. Graças a Deus está tudo garantido por nossa constituição democrática.
Por isso mesmo que assim como temos de respeitar o resultado das urnas, cabe ao governo eleito governar, fazer suas escolhas e cometer seus eventuais erros e acertos. E a nós cabe sempre cobrar, reclamar, pressionar, elogiar, criticar, apoiar, se opor, propor alternativas, etc.
Mas soltar foguetes ou sofrer por antecipação, aqui da planície, com um ministério que ainda nem tomou posse!?

E com essa me despeço de 2014 – por mais que este ano teime em não acabar – e desejo feliz 2015 a todas/os!

sexta-feira, 19 de dezembro de 2014

Muito além do Fingerprint file...

Matéria super interessante – e assustadora – sobre a impossibilidade de privacidade na Rede, assinada por Farhad Manjoo, saiu ontem no blog Bits, do New York Times: "The Lesson of the Sony Hack: We Should All Jump to the ‘Erasable Internet" (http://bits.blogs.nytimes.com/2014/12/18/the-lesson-of-the-sony-hack-we-should-all-jump-to-the-erasable-internet/?_r=2 ).
Lembrou-me velho funk, ligeiramente paranoico, dos Stones: Fingerprint file era a faixa final do lado B do antológico Lp de 1974, It’s only rock’n’roll. O último daquela que, modestamente, considero a melhor fase da banda, com Mick Taylor na guitarra solo. Embora, nesse caso, curiosamente, quem abre a música tocando o riff que dá todo o molho, é ninguém menos do que o outro Mick, o Jagger (eis aqui montagem com versão ao vivo, já do ano seguinte, com o definitivo Ronnie Wood na vaga que fora de Taylor e Brian Jones: http://youtu.be/ZpSCzVjwPC8)

Segue abaixo a letra (... what a price, what a price to pay...):


Fingerprint file
(Jagger & Richards)
Fingerprint file, you get me down
You keep me running
Know my way around. Yes, you do, child
Fingerprint file, you bring me down
Keep me running
You keep me on the ground
Know my moves
Way ahead of time
Listening to me
On your satellite
Feeling followed
Feeling tagged
Crossing water
Trying to wipe my tracks
And there's some little jerk in the FBI
A keepin' papers on me six feet high
It gets me down, it gets me down, it gets me down
You better watch out
On your telephone
Wrong number
They know you ain't home
And there's some little jerk in the FBI
A keepin' papers on me six feet high
It gets me down, it gets me down, it gets me down
Who's the man on the corner; that corner over there
I don't know. Well, you better lay low. Watch out
Keep on the look out
Electric eyes
Rats on the sell out
Who gonna testify
You know my habits
Way a head of time
Listening to me
On your satellite
And there's some little jerk in the FBI
A keepin' papers on me six feet high
It gets me down, it gets me down, it gets me down
It gets me down
Hello, baby, mm-hmm
Ah, yeah, you know we ain't, we ain't talkin' alone
Who's listening? But I don't really know
But you better tell the SIS to keep out of sight
'Cause I know they takin' pictures on the ultraviolet light
Yes, uh huh, yeah, but these days it's all secrecy; no privacy
Shoot first, that' s right... you know
Bye bye. Who's listening?
Right now somebody is listening to you
Keeping their eyes peeled on you
Mmm, mmm, what a price, what a price to pay
All right. Good night, sleep tight

segunda-feira, 15 de dezembro de 2014

“Não vamos nos dispersar!” (de novo)

Poucas semanas antes do segundo turno das eleições presidenciais passadas, antecipei aqui, neste blog, o que era perfeitamente óbvio: o início do chamado "terceiro turno"; ou seja, a previsível manutenção de um clima de radicalização e troca de gentilezas entre os dois lados da disputa, por conta dos ressentimentos acumulados por vinte anos de rivalidade entre PT e PSDB, devidamente acirrados na dura campanha deste ano (e sem poder prever então também a pequena margem relativa de votos que separaria, afinal, a candidata vencedora e reeleita, do desafiante, segundo colocado; o que certamente haveria de contribuir ainda mais para a insegurança geral e para aumentar a dificuldade em aceitar a derrota para o lado perdedor).
Só isso já seria mais do que o suficiente para compreender o estado de ânimo nas fileiras e nas altas cúpulas do tucanato (e sem esquecer, é claro, o quanto os desdobramentos da investigação e exploração jornalística do escândalo de corrupção na Petrobras colocam ainda mais lenha nessa fogueira).
Mas tenho a nítida impressão de que há ainda outras razões para o estado atual de excitação tucana, em especial o do novo presidente e líder do partido, o próprio candidato derrotado, Senador Aécio Neves.
Já tem sido levantado por muitos observadores o quanto a conjugação paradoxal do excelente desempenho obtido por Aécio no plano nacional, mesmo perdendo, de par, contudo, com a preocupante derrota pessoal em seu estado, Minas Gerais - onde não somente foi derrotado diretamente, como candidato, mas onde seu partido perdeu a hegemonia local, após seus dois mandatos como governador (e criador de seu sucessor) - colocam o seu futuro político numa encruzilhada de alta voltagem: de um lado, perspectivas de altos voos no contexto federal mais amplo; de outro, a necessidade urgente de reconstruir suas bases locais de sustentação, diante da máquina do estado, agora controlada por seus maiores rivais. Daí, talvez, os arroubos do mineiro em se apresentar logo como líder inconteste da oposição ao governo Dilma (com arengas que chegam até a lembrar espécimes de aves ilustres, mas relativamente agourentas do passado; muito mais para corvos do que para tucanos...).
Mas também é fato que desde as grandes vitórias de FHC nas eleições da década de 1990, nunca um candidato peessedebista chegou tão perto da vitória, nem amealhou tantos votos quanto Aécio neste ano: mais de 50 milhões. Não é pouca coisa. E embora tanto Serra quanto Alckmin, em suas derrotas anteriores para o PT, também tenham obtido desempenhos bem razoáveis - levaram a disputa para o 2º turno e lá obtiveram votações expressivas, em torno dos 30, 40 milhões - é certo que alguma outra coisa parece, portanto, estar agitando de modo inédito o ninho desses pássaros orgulhosos.
Se no apogeu do Plano Real e do prestígio de FHC a hegemonia tucana parecia flutuar sobre a chamada grande maioria silenciosa, numa onda geral de alívio e euforia pela domesticação, afinal, do monstro da hiperinflação – enquanto a maré montante do PT ainda se debatia nas amarras de suas próprias contradições e imaturidades internas –, com a vitória do "Lulinha Paz e Amor" em 2002, a chegada inédita das caravanas petistas ao poder, e o sucesso da relativamente surpreendente combinação inicial de estabilidade com crescimento econômico e distribuição de renda da “Era Lula”, não somente processou-se a maior alternância democrática de poder da história do Estado brasileiro. Com novíssimos inquilinos adentrando os vastos palácios da corte.
Em primeiro lugar, estabeleceu-se, é claro, uma nova dinâmica de vínculos diretos entre o Poder Central e a massa cidadã. Mas alterou-se também o caráter da relação entre a máquina desse mesmo Estado e a sociedade civil. Alteraram-se os canais de acesso e a dinâmica das disputas pelo poder. Em especial na arena mais democraticamente decisiva: a eleitoral.
O atual assanhamento tucano, mesmo após a quarta derrota consecutiva para o seu maior rival, parece-me dever-se ao fato de que, talvez pela primeira vez, os milhões de votos obtidos pela oposição não refletem essencialmente apenas o resultado de uma campanha passada, seus erros e acertos estratégicos; não. Dessa vez, eles parecem trazer consigo a oportunidade do encontro do PSDB não com uma maioria mais ou menos fortuita e difusa, mas igualmente volúvel e volátil – capaz de hoje entronizar subitamente uma liderança ou plataforma, para amanhã abandoná-la, com a mesma sem-cerimônia – mas sim com uma minoria significativa: militante ou simpatizante, mais consistente e duradoura.
A ansiedade tucana, para além de todas as boas razões mencionadas, e a essa altura do calendário – ainda tão longe das próximas eleições -, parece se alimentar também da expectativa e busca da fidelização dos setores mais ativos e engajados do significativo contingente de eleitores que levaram a candidatura presidencial do PSDB bem mais longe do que se esperava. Ânsia de vincular-se talvez mais fortemente e de modo mais duradouro a setores organizados da sociedade brasileira, mas acima de tudo, de finalmente arregimentar-se uma militância tucana numericamente respeitável, efetivamente digna desse nome, capaz enfim de rivalizar com o PT e acabar com seu histórico monopólio nacional do status de “partido de massas”.
Ou seja: não se trata apenas, para o PSDB, de seguir fustigando o governo, no papel que cabe naturalmente à oposição (ainda mais diante de um filão como esse da Petrobras). Esticar a campanha eleitoral e manter o terceiro turno vivo e saltitante é muito mais do que adiar a ressaca da derrota: é tentar manter mobilizada a legião que se formou em torno de Aécio (ou contra Dilma e o PT). Assim, como vovô Tancredo, há coisa de 30 anos, nos desdobramentos da campanha das “Diretas Já!” – mas também Collor de Mello, ao tomar posse, em 1990 –, cabe agora ao líder tucano repetir o velho bordão e evitar a dispersão do movimento.
A questão que se coloca agora, pois, é: até onde pode ir o sonho de uma militância tucana de massas e de uma ampliação significativa da rede de capilarização do partido junto à sociedade civil, capaz de fazer frente a tudo que o PT construiu quase que exclusivamente em sua hoje longa trajetória (e talvez agora desgastado pelo exercício continuado do poder e seus altos custos)?
Quão efêmero pode ser o engajamento dos apoiadores e simpatizantes do PSDB? Como fazer de uma possível e mais ou menos consistente massa antipetista, uma força de mobilização mais permanente e comprometida com os planos de voo específicos do tucanato?
Como ir além da mera repetição dos slogans e fazer história nova?

domingo, 7 de dezembro de 2014

O som, a fúria e (acima de tudo) o tédio


"Why do the faithful have such a will, to believe in something.
And call it the name they choose, having chosen nothing"

Back-door angels,
Ian Anderson

Hoje se completam seis semanas desde as eleições. Mais de um mês já se passou desde que a presidente Dilma foi reeleita. E desde então tenho tentado manter minha atenção e interesse no noticiário político. Mas está difícil.
Entendo que os políticos e demais profissionais da res publica têm todos de se reposicionar em função dos resultados eleitorais, das vitórias e derrotas, e das perspectivas e apostas que se abrem. E o mesmo vale para a legião de interessados em abocanhar algum naco da farta e generosa oferta de despojos acessíveis aos amigos das diversas cortes patrimoniais do inevitável e onipresente Estado brasileiro, em todos os seus níveis e extensões.
Suponho também que os diversos tipos de militantes e simpatizantes têm de seguir alimentando e dando asas às suas identidades e ansiedades, mais ou menos recém-adquiridas, ou recém-radicalizadas, consultando todos os oráculos disponíveis e auscultando até os mais leves rumores e suspeitas de mobilização de aliados e, principalmente, inimigos.
Sei igualmente bem que os jornais, revistas e demais meios têm que seguir vendendo e faturando (e atendendo seus respectivos públicos e clientelas particulares - não necessária e publicamente discerníveis). E para isso há de se explorar até a última gota dos escândalos, ou esboços de projetos de escândalo disponíveis, ou ainda, quando essa oferta rarear, dos inúmeros debates, fofocas e picuinhas menores (mas nem por isso, às vezes, mais interessantes).
E finalmente, não ignoro que os coleguinhas da intelligentsia - ou intelligentsias - não têm como recusar sua douta colaboração nessa geleia geral cada vez mais célere e interconectada.
E tome de especulação no meio dessa entressafra ou limbo que se forma entre uma eleição geral e o início de novos governos eleitos e legislaturas (algo assim estimulante como o recesso de férias do futebol).
E dá-lhe interpretação sobre cada ínfimo detalhe de ação partidária ou discurso oficial, cada espasmo de agitação ou demonstração de inquietude social. Por mais irrelevantes que possam parecer (e sem esquecer o manancial inesgotável da repercussão ou reverberação ad infinitum das próprias intervenções críticas ou analíticas; de um lado ou de outro da lida).
Mas chega a ser cansativo o modo com que se tenta fabricar e repercutir factóides onde pode não existir (ainda) rigorosamente nada de publicamente relevante acontecendo.
Da ansiosa cobertura do mais recente episódio do velhíssimo enredo de corrupção nacional endêmica, a chamada Operação Lava-a-jato - adoro esses nomes de investigação que o pessoal arranja! Nunca consigo entender os significados; mas acho o máximo! Me lembra as séries de aventura que assistia quando moleque -, à emocionante (?!) reforma ministerial e sua bolsa de apostas em torno de nomes e especulações sobre mudanças de policies, e sem esquecer, é claro, da fascinante eleição para a presidência da Câmara, temos aí um coquetel realmente imperdível. Como alguém ainda pode sofrer de insônia num contexto como esse?!
Por favor, não me entendam mal.
Longe de mim lamentar os bons fundamentos do tédio que a atual democracia brasileira pode provocar. De modo algum.
Ao contrário de aparente maioria - ou minoria ruidosa -, meu ideal de democracia é exatamente isso: um porre. Onde nada acontece além de escândalos, CPIs, escaramuças recorrentes entre a situação e a oposição, combates encarniçados por sinecuras e prebendas em geral, especulações intermináveis em torno de platitudes, insinuações e discursos para boi dormir, e sem esquecer, obviamente, de regar tudo com boas doses de sensacionalismo barato e, não raro, irresponsável. Em suma: muita espuma, som e fúria, pairando nefelibaticamente sobre o funcionamento regular e comezinho das mesmas vetustas e mal-apreciadas instituições ditas democráticas.
Compreendo e acho tudo, portanto, perfeitamente normal.
Cada um tem de seguir jogando seu jogo, desempenhando seu papel.
E enquanto houver campeonato - ou encenação - ainda estamos no lucro.
Mas que me dá um sono danado e uma vontade enorme de ler de tudo, menos o noticiário político...

domingo, 26 de outubro de 2014

A diferença

Ainda mais cedo do que já antecipávamos, o terceiro turno começou, sem nem ao menos esperar o desfecho do segundo. Ainda nem se confirmou se Dilma será mesmo reeleita - tal como sugerido pelas últimas pesquisas do Datafolha e do Ibope - e a bandeira do seu impeachment já foi defraudada pelos arautos previsíveis.
Ao longo dessa campanha – mas, a rigor, há muito mais tempo – sempre me incomodou o modo simplista, eventualmente radical, e ultimamente grosseiro com que cada um dos lados da grande rivalidade política nacional tratava o seu inimigo. Nunca levei muito a sério algumas das principais acusações de parte a parte, nem consegui me convencer de que a vitória de qualquer lado pudesse significar tamanha tragédia de proporções épicas. Seja do ponto de vista macroeconômico, seja do ponto de vista das políticas sociais, muito menos ainda no que respeita às tão repisadas supostas razões da ética, da moral e dos bons costumes. Conversa fiada sobre “nova política”, então, sempre me deu urticária.
Sei também que meus amigos mais engajados, de cada lado, vão querer me demonstrar, por A + B - e agora certamente, com muito mais ênfase e alarme - que estou enganado e que não estou atentando devidamente para o risco que pode representar a vitória do lado mau nessa contenda. A meu favor posso apenas me vangloriar de até aqui não ter brigado a sério com ninguém, não ter bloqueado (ainda) ninguém da minha rede, nem (que eu saiba) ter sido bloqueado. Ao menos alguma vantagem existe em ser tão cético (ou cínico).
Pois bem.
Findo o último debate do 2º turno presidencial, devo dizer que sigo refutando todos os alarmes terroristas e todas as simplificações ideológicas ou partidárias. Mas ao mesmo tempo torna-se cada vez mais claro o porquê de minha escolha de lados na carnificina que se anuncia. 
Escutando os candidatos torna-se evidente aquela que para mim é a diferença principal: não se trata do cotejo efetivo das duas administrações – a do PSDB e a do PT – seja por qual critério técnico ou científico (?!); não se trata de saber qual a mais verdadeira ou plausível das muitas versões contraditórias e eventualmente distorcidas sobre tantos temas e áreas de ação governamental; nem de qualidades, defeitos, virtudes morais ou idiossincrasias de caráter pessoal de Dilma ou Aécio; de modo algum. E é claro que também não se trata de nenhuma proposta de policy concreta.
Mas sim o fato de que sempre que no último debate se falou sobre como resolver problemas reais – em especial nas perguntas dos eleitores indecisos convidados –, enquanto Dilma tendeu a responder, com eficácia retórica discutível (cá entre nós: retórica definitivamente não é o forte da candidata), mencionando algum programa ou projeto muito específico de seu governo, por sua vez Aécio, além de eventualmente se comprometer com grandes metas de realização, acabava sempre voltando ao mesmo ponto: seja qual for o assunto, tudo se resolverá a contento porque em seu governo a superioridade cognitiva, técnica e, last but not least, moral tucanas garantirão infalivelmente os resultados. Era para ele absolutamente desnecessário entrar em detalhes. Dado que, segundo sua avaliação, a administração petista é, intrinsecamente – ou seja: pelo simples fato de ser petista –, um desastre irremissível, de um modo ou de outro o desempenho de seu novo governo peessedebista será, em qualquer área, natural e forçosamente superior. A aposta é simples e direta: deem o poder ao PSDB e seus quadros altamente qualificados colocarão a administração do país nos devidos trilhos, dando aos itens da agenda de governo o devido tratamento. Seja qual for o problema. 
Nada muito diferente do que foi sempre o espírito das administrações tucanas, de 1995 a 2003: façamos as reformas estruturais necessárias, submetamos o plano de governo às diretrizes fixadas correta e cientificamente, dê-se ao Estado o seu escopo, função e lugar adequados e tudo o mais se desenvolverá a contento, no intervalo de tempo necessário. O mercado e a sociedade civil se encarregarão do resto. E se algum custo "marginal" momentâneo se elevar - desemprego, crescimento econômico pífio, redução da participação dos salários na renda, etc. - paciência. Afinal, não se faz omelete sem quebrar os ovos, nem existe almoço grátis. Desde que não se façam concessões "populistas" e se conspurque assim a pureza técnica do receituário... tudo se ajeita (afinal, os tais custos sempre podem ser naturalmente distribuídos pelos mesmos canais que deveriam transformá-los em forças virtuosas: o mercado e a sacrossanta sociedade civil).
Não chamaria isso de "neoliberalismo", ou coisa parecida; acho o rótulo inexato e a essa altura excessivamente contaminado. Prefiro chamar isso de variante mais tecnocrática dos vários neo-udenismos que empesteiam nosso ambiente político contemporâneo: a crença de que basta colocar no poder os quadros mais supostamente qualificados em termos morais e cognitivos, dotados da necessária vontade política e, pronto; tudo se resolve, e o benefício será então de todos. Desde que é claro o poder seja exclusividade dos mais bem preparados para isso (seja lá o que for tal preparo). E mesmo que a despeito da vontade soberana do eleitorado.
Voltando pois ao debate, não vejo nenhuma razão para desconfiar da autenticidade com que Aécio assim afirmou seus compromissos. Muito pelo contrário (se tem algo de que não podemos duvidar é da pose e da empáfia de um tucano; assim como da obstinação e teimosia dos petistas).
E creio que podemos até fazer um balanço bem equilibrado e desapaixonado das venturas e desventuras tanto dos governos de FHC, quanto dos de Lula e Dilma (por isso mesmo não engulo fanatismo e histeria radical).
Mas nada disso importa agora.
A escolha final deixada aos indecisos, conforme o desempenho dos candidatos anteontem, parece ser simplesmente entre o “varejo” de Dilma, e o juízo de cada um sobre a efetividade de seus vários projetos e programas específicos, ou o “atacado” de Aécio, ou seja, a aposta em seus compromissos e em suas qualidades intransferíveis para efetivá-los.
Não sei o que os eleitores, mais ou menos indecisos, soberanamente decidirão.
De minha parte não pretendo induzir o voto de ninguém, não tenho a pretensão de achar que minhas razões ou critérios de escolha sejam os melhores, nem universais, e muito menos endosso propaganda que pode ser enganosa. 
Mas definitivamente, em política, sempre que possível, prefiro não comprar no atacado.
Ainda mais quando o produto - mesmo que originalmente honesto e bem preparado  - vem embalado com tintas cada vez mais fortes de demofobia e golpismo.


sexta-feira, 3 de outubro de 2014

O terceiro turno

A essa altura do campeonato tudo leva a crer que, de um modo ou de outro, Dilma Rousseff será reeleita. Pode ser só em 26 de outubro, disputando com Marina - como as pesquisas seguem apontando -, ou com Aécio. Pode até ser já no próximo domingo.
É o desfecho mais provável. Mas ninguém garante. Minha bola de cristal, por exemplo, nunca funcionou muito bem. Este ano, então...
Na plausível hipótese de haver segundo turno, porém,e disso podemos ter certeza,este será ainda pior do que o primeiro, em matéria de radicalização.
E mais: que o próximo governo, seja de quem for, terá de lidar com a oposição mais ressentida e intolerante dos últimos tempos. Dentro e ainda mais do lado de fora do Congresso Nacional.
Ou seja: pode até não haver segundo turno. Mas do terceiro a gente não escapa.
Há duas fortes razões para que isso ocorra: a primeira se deve ao alto grau de incerteza que o pleito deste ano adquiriu por conta do acirramento e indefinição da disputa, resultando no fato de que chegamos à reta final do primeiro turno com três fortes concorrentes e, a princípio, três alternativas de resultados possíveis: Dilma X Marina, Dilma X Aécio, ou Dilma vencendo já no domingo. Em condições relativamente normais de temperatura política, essa indefinição poderia ser facilmente atribuída basicamente às ambigüidades do contexto de expectativas econômicas – como se sente hoje no cotidiano dos eleitores, e traduzida na profusão de bons e contraditórios argumentos técnicos que parecem se apresentar tanto à disposição da situação quanto das oposições -, e ao desgaste natural de permanência de um mesmo grupo no poder, por mais de uma década, num sistema tão competitivo como o nosso, hoje (o que, obviamente, corre em paralelo com o correspondente alijamento dos concorrentes; e mais dramaticamente, é claro, junto àqueles que perderam o acesso freqüente – ou mesmo permanente – que se acostumaram a oligopolizar sobre o controle do butim público e dos tradicionais privilégios de aparelhamento do nosso velho e bom Estado). De qualquer modo, e somente por tais características, a derrota - ou derrotas - já seriam naturalmente doídas (afinal, como qualquer torcedor sabe, por incrível que pareça, perder de 1x0 é pior do que de 7x1; quando se perde de goleada, não há o que discutir: o adversário foi muito melhor e ponto final; mas quando se perde de pouco, sempre se pode duvidar da justiça do placar; sempre aparece o indefectível e irritante questionamento: se aquele lance, ou aquela decisão do juiz tivessem outro desfecho, a história do jogo poderia ter sido outra; e haja ressentimento e dificuldade para aceitar a derrota). Mas é claro que o acidente com Eduardo Campos e a onda que se formou em torno da candidatura de Marina deram tons ainda mais dramáticos à tal incerteza.
O elemento que conspira mais fortemente para acirrar os ânimos, contudo, e formar nuvens escuras no horizonte, tanto de curto quanto de médio prazo, é, disparado, o tom raivoso e intolerante assumido pelo debate partidário, ou para-partidário. Em especial nos recantos soi-disant mais informados da intelligentzia nacional.
Sabemos que esse processo de radicalização tem história e não começou agora, nessa campanha (assim como ressoa a patologias políticas nacionais mais antigas, recorrentes, e de triste memória).
Mas o que impressiona é que não somente entre os próprios candidatos e suas propagandas, o que se vê hoje nos artigos de opinião e, principalmente, nas redes sociais, é uma troca cada vez mais acirrada e agressiva de gentilezas, provocações e alarmes de profecias catastróficas que de tão renitentes parecem desejar se auto-cumprir. Como se a vitória de qualquer um dos três candidatos mais competitivos pudesse representar de fato tamanho risco ou mudança de rumos, ameaça efetiva para as instituições democráticas, ou coisa parecida. Enfim, um melodrama de quinta categoria.
Entendo perfeitamente que para grande número dos variados militantes ora engajados na disputa, há muito que se ganhar ou perder (como disse, o butim é grande). Até aí, nada de muito novo.
O problema é que para outros tantos, igualmente envolvidos até o pescoço no confronto, mas sem as mesmas perspectivas concretas de ganho – ou perda –, a essa altura a disputa já se tornou simplesmente uma questão de honra. E confesso que não sei o que é pior: a luta sem quartel por “boquinhas” – que, inclusive, de “inhas” podem não ter nada – ou o engajamento ensandecido, motivado pura e simplesmente por paixões facciosas, mistificações ideológicas grosseiras, ou preconceito, insegurança e ressentimento de classe.
Seja como for, e pensando já em 2015 e no começo do próximo governo, acho bom começar a colocar as barbas de molho e pensar em alguma agenda de descompressão política.
Pois não existe ressaca pior do que aquela que se alimenta da embriaguez continuada e auto-induzida.
Ainda mais com altas doses de veneno.

sábado, 12 de julho de 2014

Coisa de louco

Deixando de lado as finais da Copa – adoro a Argentina, tenho grande carinho pelos hermanos, mas mesmo com todo o respeito pela tal unidad latino-americana, sinto muito: definitivamente não vou torcer por eles amanhã. E por um motivo muito simples: o time alemão é melhor, jogou melhor nessa Copa, e merece muito mais o título. Basta dizer que o verdadeiro grande destaque albiceleste, até aqui, foi o Mascherano! Para quem já apreciou o futebol de Brindisi, Kempes, Ardiles, Passarella, Maradona, Ortega, Batistuta e cia. milonguera ilimitada, convenhamos que é dose! – vamos mudando logo de assunto.
"Viva a liberdade!", de Roberto Andó, tem lá seus altos e baixos. Mas além da bela interpretação dupla de Toni Servillo – como os gêmeos Enrico e Giovanni – e de outras qualidades, o filme é uma bem-humorada sátira da política democrática contemporânea. Conforme já diz a sinopse – e, portanto, não vou estragar a surpresa de ninguém – o enredo envolve a clássica situação da substituição de alguém importante por um sósia que, obviamente, além da aparência em nada mais se assemelha ao original. No caso, a do deprimido e excessivamente cauteloso senador italiano e líder da oposição, Enrico Oliveri, por seu gêmeo, Giovanni: filósofo, poeta, recém-saído de uma clínica psiquiátrica e, naturalmente, bon-vivant e imprevisível. Para além dos qüiproquós típicos, revelações afetivas e acertos de contas do passado, a substituição se reflete também no ânimo dos correligionários e militantes, e, por último, mas não menos importante, numa vertiginosa recuperação de popularidade do senador-candidato e seu partido.
Num certo sentido, a ironia de “Viva a liberdade!” parece ser a de que, hoje em dia, nas velhas democracias, só mesmo um louco feliz e carismático é capaz de restituir o ânimo e a esperança aos militantes e simpatizantes na política (ao passo que os políticos sérios e responsáveis são igualmente tediosos). Pode parecer crítico demais, mas para mim, na verdade é um elogio ao regime: afinal de contas haveria sistema político melhor do que aquele em que você pode trocar os chefes aleatoriamente e isso não faria, a rigor, a menor diferença?
Ou de que afinal pouco importa se a política democrática virar mesmo um “espetáculo” – tal como protagonizado por Giovanni em seus rompantes retóricos –, desde que possamos continuar usufruindo das vantagens comparativas que, queiram seus críticos ou não, esse sistema continua oferecendo frente às demais alternativas viáveis (em especial as já testadas e conhecidas).
Acredito que ainda se poderia elucubrar melhor e mais divertidamente sobre o assunto, com base na película.
De qualquer modo, não quero levar o leitor a encará-la como um tratado político, ou coisa parecida. Graças a Deus, não!
Por isso segue aqui a recomendação para curtir o filme (e agradeço à minha querida colega Elena Lazarou pela dica).
Quanto a Brasil e Holanda...
Esquece.

quarta-feira, 9 de julho de 2014

Ciclo completo

Foram exatos 64 anos desde o Maracanazo de 1950 até o massacre de ontem, no Mineirão.
Mais de meio século de epopéia, drama, glória e ocaso do futebol pentacampeão mundial (graças à eliminação precoce da tetracampeã Itália, ainda vamos poder manter a exclusividade dessa marca por mais algum tempo; mas isso se torna cada vez mais irrelevante).
Para mim, porém, um ciclo histórico se fechou ontem: a era da supremacia inconteste e neurótica do futebol brasileiro nas Copas do Mundo. A era de presunção e ufanismo infalível dominada pela crença na nossa superioridade endêmica, na mística insuperável da camisa amarela, na certeza de que somente algum fator extraordinário e maléfico, extra ou intra campo - um complô internacional, um juiz ladrão, um técnico muito burro, ou algum traidor da pátria travestido de frangueiro ou cobrador de pênalti nas nuvens, etc. - poderia nos roubar, de fato, aquilo que por direito é sempre nosso: o título mundial.
Acabou.
A verdade é que o trauma de 1950 já deveria ter sido superado, com sobras, há muito tempo, pelas cinco grandes conquistas subsequentes (a rigor, quem tinha de se preocupar com aquela Copa são os uruguaios, que nunca mais conquistaram o título). E pelo menos nas nossas três últimas vitórias, as que pude assistir, posso dizer sem receio: em nenhuma delas a seleção brasileira era infalível ou imbatível (como se isso pudesse existir em futebol). Até a mais brilhante e inesquecível delas – a de 1970 – tinha uma defesa claudicante e só não tomou gol numa única partida (a vitória épica sobre a Inglaterra, então campeã do mundo, por 1x0, gol de placa de Jairzinho). As de 1994 e 2002, também tinham seus altos e baixos, e também tiveram que passar por alguns sufocos. Mas eram todas equipes taticamente consistentes, com recursos técnicos e, o mais importante, com a cabeça no lugar. E mesmo assim todas poderiam ter ficado no meio do caminho, encarando adversários de primeira, em jogos que foram muitas vezes difíceis (ou escapando de outros rivais ainda mais temíveis, por conta dos cruzamentos da Copa).
Não vou repisar os problemas flagrantes da seleção nesta Copa (quem quiser que leia os posts anteriores). A diferença mais importante entre o Brasil que começou jogando ontem e o dos jogos anteriores – talvez, admita-se, especialmente mais mal escalado do que de costume, em função da ausência de Neymar e de qualquer plano B para suprir o que seria nosso único grande trunfo no torneio – é que, dessa vez, esbarramos num time realmente forte, tecnicamente aparelhado e bem preparado há anos para disputar essa ou qualquer outra competição de alto nível.
Para quem não sabe, ou não se lembra (recomendo, aliás, a leitura dos meus poucos posts da Copa de 2010, nesse mesmo blog) foi praticamente essa mesma Alemanha, com o mesmo treinador, que há quatro anos despachou daquela Copa, em seqüência, e por goleada, tanto a Inglaterra quanto a Argentina (de Messi, Tevez, Di Maria, e com Maradona no banco), e só não chegou à final porque parou na própria Espanha, nas semifinais. E mesmo assim os futuros campeões suaram para bater os alemães (1x0).
Ou seja: o placar de ontem foi mesmo chocante e duro de engolir. Mas a superioridade alemã era mais do que previsível. O que obviamente não dava para prever foi o modo com que essa diferença entre as duas equipes se traduziu em tantos gols, em tão poucos e decisivos minutos. Apagões como esse que o time do Brasil sofreu, porém, ocorrem no futebol com muito mais freqüência do que se imagina. É que nem sempre isso acontece numa Copa, diante de um grupo tão competente como o alemão – e que soube aproveitar muito bem a oportunidade; coisa que a maioria dos times não consegue –, e acometendo, do outro lado, uma seleção tão experiente como a nossa deveria se mostrar.
Certamente é impossível deixar de creditar muito dessa pane ao estado emocional lamentável em que foi colocado – ou se colocou – esse grupo.
Mas deixemos isso para lá. Pois não tenho nenhum interesse em procurar causas unilaterais, nem muito menos participar do infeliz esporte nacional de busca de culpados (inclusive porque, como já sugeri, o problema é maior e tem a ver com a queda geral de qualidade do nosso futebol).
Muito mais importante, creio, é tentar aprender com os vitoriosos da hora. E aí temos material de sobra, principalmente em termos de planejamento de médio e longo prazo, mas também de como lidar com a pressão psicológica e com as muitas interferências que nada tem a ver com o esporte, mas que são inevitáveis (como as da política e do mercado).
Mas para começo de conversa, aproveitemos enfim essa dura lição que os alemães nos deram, deixemos de lado o peso do passado, e encerremos de uma vez o ciclo iniciado em 1950.
Sepultemos de vez essa empáfia presunçosa. E de quebra também o complexo de vira-latas que é seu duplo inseparável. 

domingo, 6 de julho de 2014

Sem pessimismo

Depois de mais essa vitória sofrida sobre a valorosa Colômbia, mantenho tudo o que disse nos últimos posts sobre as limitações técnicas e táticas do elenco brasileiro e do time que vem jogando.
Mas agora prefiro enfatizar o que houve de bom e de melhoria, dos últimos jogos para o de anteontem.
Primeiro, o primeiro tempo: não foi de modo algum brilhante; mas já começou a lembrar ao menos um pouco da eficiência do time na última Copa das Confederações. Verdade que o gol logo no início deu tranqüilidade. Mas o crédito para isso também deve ser dado à postura ofensiva do time assim que a bola rolou - coisa que, aliás, também ocorreu em jogos anteriores. Dessa vez, porém, o Brasil se tranquilizou, manteve a pegada, não deu espaços à Colômbia, valorizou mais a posse de bola e poderia até ter saído para o intervalo com uma vantagem maior. Mesmo sem grandes armadores a equipe jogou mais compacta e ocupou melhor os espaços do campo. Principalmente o meio dele.
Já o segundo tempo...
Mas em segundo lugar, há que se elogiar o futebol da nossa dupla de zaga, Thiago Silva e David Luiz: certamente uma das melhores da Copa - se não, simplesmente, a melhor - e disparado o destaque da seleção. Eles, que em jogos anteriores já tiveram até de bancar os armadores de longa de distância - com resultados, obviamente, duvidosos -, anteontem supriram também as carências recorrentes do ataque. Se Thiago Silva foi oportunista como um centroavante de ofício no importante gol inicial, David Luiz, por sua vez, merece uma crônica especial à parte.
Não só pelo fantástico gol marcado ontem, digno de um Nelinho (alô rapaziada que não acompanhou o futebol daqueles idos da década de 1970: podem buscar na Internet os vídeos da fera; na minha modesta e limitada opinião futebolística, o maior e mais versátil batedor de faltas da nossa - riquíssima - galeria de craques!).
Mas também porque a bola e principalmente a personalidade que o garoto está desfilando na Copa são comparáveis às dos maiores craques de todos os tempos (e aqui cabe menção também ao belo gesto no fim do jogo, consolando o ótimo James Rodriguez).
Sem exageros ou ufanismos tolos, acredito sinceramente que se mantiver o pique atual e a cabeça no lugar, David Luiz pode se tornar um jogador do quilate de ninguém menos do que um Franz Beckenbauer.
A torcer e a conferir.  
Quanto ao hexa (e já que falamos de alemães...): não vai ser moleza passar pelos grringos, ainda mais sem Neymar - criminosa e estupidamente atingido - e sem Thiago (bobamente advertido).
Mas essa é a melhor hora para a tal da superação, e para apresentar um futebol mais condizente com nossa tradição.

domingo, 29 de junho de 2014

O "campeão voltou!" (e o sofrimento também)

Futebol é o esporte mais fascinante, entre outras coisas, porque é imprevisível. É o tal chavão da "caixinha de surpresas".
Por isso, ninguém pode dizer que mesmo jogando mal, como quase todo o jogo de ontem, contra o Chile, essa seleção do Brasil não possa seguir adiante, e mesmo reencontrar um pouco do brilho e da pegada que a fez conquistar com méritos a última Copa das Confederações (contra um grupo de adversários não tão inferiores assim aos competidores que ainda seguem vivos na Copa).
Mas é preciso ser franco: nosso elenco tem sérias limitações técnicas, e os que vêm jogando até aqui não mostraram consistência tática, nem segurança em matéria de estrutura emocional para lidar com a pressão gigantesca da obrigação de ganhar. Não deve ser brincadeira a barra que esses camaradas estão segurando; se toda as seleções do Brasil sentem sempre o peso de um suposto favoritismo em todas as Copas - já que nos acostumamos a pensar que ninguém mais ganha a competição: somos sempre nós, os brasileiros, que ou a vencemos ou perdemos -, imagine agora, com a Copa sendo jogada aqui (aliás, foi certamente por isso que ontem, no Maraca, vi tantos brasileiros ensandecidos, torcendo fervorosa e agressivamente contra o Uruguai - sem dúvida para despachar de vez o fantasma de 1950 - talvez sem atentar para o fato de que a vencedora do jogo - e nossa próxima adversária -, a Colômbia, está jogando muito melhor do que o Brasil e o Uruguai, juntos).   
Mas é justamente aí que está o busílis: há um completo descompasso entre o verdadeiro nível do futebol que se pratica hoje, no Brasil, e por brasileiros em todo o planeta, e nossa História no esporte. O que nos levou, por tanto tempo, a cultivar a presunção de que somos e seremos sempre os melhores, sempre os favoritos. Que temos sempre a obrigação de ganhar. Que, como diz a torcida, "o campeão voltou!". 
Ora, que rubro-negros inexperientes tenham o hábito patético de cultivar esse tipo de soberba e presunção, vá lá; faz até parte do charme e do folclore do futebol carioca. Mas quando isso acontece com a maioria esmagadora da torcida brasileira os riscos são bem mais altos (e aí os excessos de ufanismo midiático fatalmente cobrarão sua fatura).
A dura realidade é observar o time do Brasil em campo, olhar em seguida para o banco, até ir mais além, e tentar lembrar jogadores que nem foram convocados, e se dar conta, tragicamente, que, ao contrário do que acontecia há algum tempo, não dá nem para reclamar do técnico, da escalação ou até da convocação dos jogadores. Felipão e sua comissão técnica certamente têm sua dose de grande responsabilidade pelo pobre futebol apresentado até aqui e no sofrimento que tem sido cada jogo (em especial o último). Mas não podem ser unilateralmente responsabilizados pela visível queda de nível técnico e tático do futebol brasileiro.
Com efeito - e para ficar num exemplo próximo no tempo e da atual penúria -, em 2010 me cansei de criticar Dunga por não levar Neymar, Ronaldinho Gaúcho e Paulo Henrique Ganso à África do Sul. Hoje, o primeiro está aí, tentando compensar com seu talento solitário as demais carências do time. O segundo e o terceiro de fato não parecem ter mostrado em campo, ultimamente, futebol que justificasse suas convocações (ou reclamações por seu esquecimento). 
Faço questão de lembrar de Ganso, porém, não pelo que ele vem jogando, é claro, mas porque talvez seja o único espécime promissor - ou ex-promissor! - que temos numa posição essencial, a armação, onde outrora nosso futebol foi pródigo. Ou seja: não existem mais armadores talentosos no futebol brasileiro. E aproveito para admitir que meu entusiasmo inicial com o Oscar do jogo contra a Croácia me levou a classificá-lo então como meia; ele de fato, aparece de vez em quando por ali, mas segue sendo muito mais o que antigamente chamávamos de "ponta de lança" - e que hoje chamam de "terceiro ou quarto homem de meio campo", ou coisa parecida; quer dizer: um jogador que sabe conduzir a bola, se aproxima dos atacantes, tabela e chuta; mas não é capaz de fazer a ligação entre a defesa e o ataque, armando e organizando o time. 
Ninguém faz isso hoje na seleção brasileira! E com exceção de talentosos estrangeiros que ainda frequentam ou freqüentaram recentemente nossos times - Conca, Dalessandro, Montillo, Seedorf (snif!) - não se vê mais nada do gênero em nossos campos. 
Será que em breve também teremos de recorrer à nacionalização de craques estrangeiros para suprir nossas carências? Tal como fazem quase todos os nossos grandes rivais, principalmente os europeus?
Podemos ainda sonhar com o hexa (e nos preparar para sofrer muito ainda).
Mas não adianta tapar o sol com a peneira. Nem confundir slogans com a dura e triste realidade.

sexta-feira, 20 de junho de 2014

Maratonas

Passada a primeira semana de Copa, com jogos todos os dias, ainda não me sinto cansado de ver a bola rolando. 
Verdade que, obviamente, não vi todos eles. Nem poderia. Mas a postura ofensiva das equipes, maciçamente predominante, está fazendo desse Mundial, ao menos até aqui, disparado o melhor dos últimos tempos. E isso mesmo quando a técnica de alguns jogadores deixa a desejar. É um jogo emocionante atrás do outro, com ataques lá e cá, muitas vezes com alternâncias de placar, ou, pelo menos, muito equilíbrio em termos de disposição e chances criadas.
Também é verdade que algumas equipes favoritas, ou badaladas, começaram a competição de forma pouco mais do que decepcionante. Casos de Argentina (mesmo com o golaço de Messi), Portugal, o próprio Brasil, e, é claro, acima de todos - ou melhor, abaixo - a Espanha (minha primeira queimação de língua; foi só eu dizer que ainda acreditava nela...). 
Em compensação, Chile, Colômbia, Costa Rica, e Costa do Marfim, têm sido gratas surpresas, além das confirmações, até aqui, de Itália, França, e, sobretudo, Holanda e Alemanha (e vale mais uma vez uma menção honrosa ao Uruguai, de Suarez, que acaba de ressuscitar, e à Inglaterra, que mesmo perdendo duas vezes seguidas, mostrou qualidades; continuo achando criminosa a arrumação dos grupos, com a criação do chamado "grupo da morte").
Mas o que realmente já não dá mais pra aturar, mal começa a disputa é não somente a repetição nauseante das propagandas, mas também a falta de criatividade de muitas delas, com seus clichês em matéria de ufanismo batido, estereótipos de "brasilidade", ou cansativa exploração constrangedora da popularidade (?!) de certos personagens - principalmente jogadores e técnicos de futebol - que da noite para o dia têm de adquirir dotes teatrais insuspeitos.
Sem dúvida que algumas são bem boladas e até bem interpretadas por quem não tem nenhuma obrigação de saber como fazê-lo (já que assim como talento e competência no esporte não se improvisa, o mesmo vale para todas as artes).
Mas assim como acontece com muitos outros setores da comunicação contemporânea, parece que grande parte da publicidade brasileira também está sofrendo de uma espécie de autismo: repete-se à exaustão, abusa das mesmas fórmulas, e reitera os mesmos motivos e chavões - seja os da suposta malandragem adquirida a goles de cerveja, seja da rivalidade com os argentinos, ou as da pieguice patriótica - na reprodução de uma conversa cada vez mais fechada em si mesma, muito mais voltada para os próprios pares e coleguinhas.
Justiça seja feita que o mesmo diagnóstico também valeria hoje para muitas outras práticas e categorias profissionais (a começar pela nossa augusta Academia).
Mas nenhum outro discurso é mais onipresente, inescapável e, acima de tudo, mais estereotipado que o da propaganda.
Ainda mais em tempos de Copa e de olhos grudados na tela.

domingo, 15 de junho de 2014

O pecado e a grata surpresa

Começou mesmo. E começou muito bem,
No momento em que escrevo a bola já rolou em sete partidas da Copa. Nenhum empate, nenhum zero a zero. Uma média invejável de gols para um começo de competição.
E pelo menos dois jogos que já entraram para a História.
Mas vou inverter a ordem cronológica dos eventos porque antes de mostrar porque o jogo de ontem entre Holanda e Espanha foi uma efeméride única, é preciso denunciar o que já se desenhava como o maior pecado dessa Copa e que agora se torna ainda mais grave: quem concebeu, ou tornou possível esse crime contra o futebol mundial de juntar, num mesmo grupo eliminatório, escolas de futebol tão importantes como Itália, Inglaterra e Uruguai? Três campeões mundiais! Detentores, juntos, de sete títulos!
Se isso já era um acinte a Costa Rica resolveu aumentar o drama. Em vez de se contentar com seu papel de coadjuvante desse autêntico grupo da morte, ela resolveu se transformar, também, em protagonista. Tirou dona Celeste para dançar e deu-lhe um baile! Como joga o tal de Campbell! Um jogo inesquecível.
Agora vamos ter de forçosamente lamentar a saída prematura não de uma, mas sim duas grandes seleções. Sim, porque logo depois dessa primeira grande zebra da Copa - Costa Rica 3x1 Uruguai - Itália e Inglaterra fizeram um ótimo jogo, vencido pela Squadra Azzurra por 2x1 (com belos gols que contaram, direta ou indiretamente, com as assinaturas de craques como Pirlo, Rooney e Balotelli). 
Que desperdício de talento e tradição futebolística. Inclusive porque agora também vamos ficar tristes se a Costa Rica cair logo na 1ª fase (como estava, de certo modo, previsto).
Mas se esse clássico europeu já foi ótimo, o que dizer do espetáculo holandês de ontem?
O que Van Persie, Robben e Cia. aprontaram para cima da "Fúria" foi coisa que só pode acontecer em Copa do Mundo.
Para mim, porém, a goleada teve um sabor todo especial.
Nada contra os espanhóis, que continuo achando excelentes, possuidores do time mais bem montado da Copa, e com pelo menos um craque, Iniesta, que sempre dá gosto ver jogar.
Mas é que sempre tive uma ligação especial com essa equipe que ontem jogou toda de azul, e que começou a me encantar há exatos quarenta anos, na 1ª Copa da Alemanha, quase sempre vestindo laranja. Fiquei tão embasbacado com o futebol do esquadrão de Cruyff e de Neeskens, que meu time de futebol de botão passou a adotar os nomes daquela "Laranja Mecânica". 
É verdade que foram os alemães que riram melhor em 1974 (e sejamos justos: também tinham um timaço, com Beckenbauer, Muller, Maier, Overath e outros). Mas meu coração futebolístico tomou uma coloração mais alaranjada daí para frente (sem prejuízo do verde-amarelo e do preto e branco eternos).
Mas ontem a vingança holandesa teve significado especial e histórico também porque já nos minutos finais, entrou na sua defesa o jovem zagueiro Joel Veltman!
E eu que nem sabia que tinha um parente disputando a Copa!
É por isso que se não der para o Brasil - que, apesar de tudo, começou bem e pode, sim, levantar mais esse caneco - já tenho minhas favoritas: a Holanda, de Veltman, e a Costa Rica.
(A não ser, é claro, que descubra algum parente distante na seleção da Bósnia, que encara a Argentina amanhã, no Maraca...)

quinta-feira, 12 de junho de 2014

Estréia digna do Oscar (e do Oscar)

Enfim, começou. E com toda a festa, a emoção, o humor, o drama e a pieguice que não podem faltar numa Copa do Mundo.
Confesso que não assisti toda a festa de abertura, nem prestei atenção a todos os detalhes (com exceção da Cláudia Leite, é claro, que mesmo cantando sem sincronia, por causa do áudio da transmissão, bate um bolão! - não entendi lhufas da música que ela partilhou com a JenyLo - igualmente talentosa! - e o tal do Pitbul, com muita energia (mas quem quer saber de música numa hora - e com pernas! - como essa(s) ?)).
Quanto ao jogo, ele teve todos os necessários ingredientes de uma digna estréia do Brasil em Mundiais. Inclusive os indispensáveis requintes de crueldade. Lembrei-me, particularmente, da nossa estréia em 1982, contra a antiga URSS. O Brasil começou perdendo graças a um frangaço de Valdir Peres, em chute de um tal de Bal (nunca esqueci esse nome porque minha querida amiga Anat "Nani" Geiger, teria então decretado: "acho que agora o Brasil... ba-bal!"). Viramos e vencemos o jogo no final do segundo tempo, com dois golaços de Sócrates e de Éder, nos únicos chutes que conseguiram passar pelo goleirão Dasaev. Daí para frente, porém, todos conhecemos o destino daquele timaço e daquela Copa (né Paolo Rossi?).
Pois hoje o drama começou com o gol contra de Marcelo. E por um momento pareceu que toda a uruca negativista que envolveu a realização desse mega-evento iria triunfar logo no começo da festa.
De qualquer modo, foi muito mais na base do coração e do talento individual que o Brasil virou e venceu. Os croatas deram muito trabalho e o placar final de 3x1 não diz o que foi a partida.
Tudo bem. Copa do Mundo só tem graça assim. E estréia é sempre mais complicado.
Mas falando em talento individual, o nome do jogo foi indiscutivelmente o Oscar.
O meia do Chelsea fez um partidaço, com atuação decisiva nos dois primeiros gols e assinando o terceiro golpe fatal. E o mais importante: mostrou que o Brasil ainda tem, pelo menos, um grande meia!
Mas deveria haver ainda um outro Oscar na história desse Brasil 3x1 Croácia.
Que Fred é um dos melhores centroavantes em atividade no planeta, todo mundo que acompanha futebol já sabe há muito tempo. Mas hoje o goleador tricolor mostrou ao mundo duas outras qualidades: perseverança e talento teatral.
Perseverança porque há muito tempo ele tenta convencer algum juiz a marcar pênalti quando ele se joga dentro da área. Quem assiste aos jogos do Fluminense com certa freqüência - mesmo não sendo tricolor (e principalmente, como é o meu caso) - sabe disso. Hoje o esforço de Fred foi recompensado. E no melhor momento possível (ainda bem que não foi num Flu X Botafogo).
Mas temos que reconhecer também que ele, de fato mereceu: à primeira vista, vendo pela tv, eu também achei que tinha sido falta. Só depois, com o auxílio das imagens de outras câmeras, pude apreciar melhor o talento interpretativo do nosso atacante, e ver como ele engrupiu direitinho o juizinho em questão (aliás, outra tradição do futebol mundial que não falha: que soprador de apito escalaram para a estréia da Copa!).
Em tarde/noite de Oscar, outro Oscar deveria ter aparecido no Itaquerão: o de melhor ator, para o Fred. 
Esperemos que agora, passado o tradicional sufoco inicial, nosso time deslanche e nos brinde com vitórias mais fáceis.
Mas até que um certo draminha - com doses de comédia - é gostoso. 

domingo, 16 de março de 2014

Poesia na lavanderia, integridade na lama

Trapaça (American Hustle), de David O. Russell, bem que poderia ser apenas mais um bom exemplar bem sucedido daquele saboroso gênero cinematográfico de filmes sobre grandes golpes e armações, recheado de picaretas simultaneamente geniais e patéticos, que correm grandes riscos e lidam com altas somas de dinheiro, e, principalmente, adornado por bons diálogos, boas tiradas, e tramas rocambolescas, nas quais o primeiro a ser ludibriado pelas manhas e reviravoltas do roteiro é o próprio público.
Certamente, o filme é tudo isso. E já seria o bastante para recomendá-lo. 
Mas há mais mistérios e seduções entre o céu e o inferno da boa malandragem cinematográfica.
Poderia gastar linhas com as qualidades de cada um dos elementos básicos da narrativa - roteiro, fotografia, música, edição, impecável direção de arte e reconstituição de época, etc. - mas tudo isso, a meu precário juízo de leigo nessas coisas, ainda é superado pelo trabalho de direção de elenco. Não há um único personagem que não receba a devida atenção (do diretor e, consequentemente, do público). O time de coadjuvantes - De Niro, inclusive - é todo ele brilhante.
Mas o quarteto de protagonistas de fato merece todos os prêmios e um lugar de destaque na nossa memória. Posso viver mais cem anos que não vou jamais esquecer e deixar de me comover com a magia do encontro e a cumplicidade entre Irving (Bale) e Sydney (Adams) - com direito à antológica cena de ambos na lavanderia -, nem com os transes tragicômicos de Richie (Cooper) e Rosalyn (Lawrence). Russell extrai tudo o que pode - e um pouco mais - de seu elenco.
E aqui caberiam alguns parágrafos só para louvar e idolatrar Amy Adams e sua Sydney/Edith (ou seja lá que outros nomes essa mulher fantástica adote). Nada, porém, que se compare à experiência de vê-la desfilar (ou desnudar) o seu incrível guarda-roupa. 
Simplesmente deliciosa!
Por fim, mas de modo indispensável, há que se explorar as dimensões morais - isso mesmo! Eu disse morais... - desse maravilhoso filme sobre picaretas. 
Primeiro porque, como já disse, Russell nos faz amar e ter piedade de cada um de seus pobres diabos, um mais patético que o outro.
E em segundo lugar, porque fez questão de doar a sua maior cota de generosidade e compaixão justamente para o personagem que hoje representa a bête noire da onda de hipocrisia moralistóide que empesteia nossa sociedade (e algures): um político. No caso, o prefeito Carmine, que acaba sendo envolvido no esquema, e mesmo sem qualquer interesse escuso, suja as mãos - como todo bom político (e, a rigor, todo bom cidadão) não pode, às vezes, deixar de fazer - para realizar alguma coisa de útil, ou de efetivamente importante. 
É na celebração da amizade, mesmo a que não tem futuro - como a de Irving e Carmine - e da cumplicidade no amor - mesmo que no pântano da ilegalidade (ou na selva da sobrevivência) - que Trapaça pode traduzir sua inusitada "mensagem" (!?) moral.
Seja como for, existe algum nome melhor do que este - trapaça - para nossa auto-indulgência, nossos auto-enganos e fantasias de integridade ou superioridade ética?

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

Interesse humano e bom jornalismo (para variar)

Philomena certamente não é o melhor filme de Stephen Frears. Mas se não bastassem os belos desempenhos de Dame Judi Dench, no papel-título, e de Steve Coogan, como o jornalista Martin Sixsmith, o enredo – verídico – já seria mais do que o suficiente para garantir, como se diz no jargão jornalístico da película, ao menos boas doses de “interesse humano”. 
A estória se passa em torno da busca da personagem-título por seu filho, entregue cinquenta anos antes para adoção à sua revelia, pelas freiras do convento onde Philomena teve de se refugiar, ainda jovem, grávida e abandonada pela família. O acaso, a crise profissional de Martin, e o bom faro jornalístico e razoavelmente inescrupuloso de uma editora atrás de uma boa reportagem com alto potencial de ‘interesse humano” – ou, talvez, quem sabe, a Providência, em seus caminhos tortos –, permitem a Frears construir uma nova versão do velho estratagema cinematográfico da parceria inusitada entre os opostos, reunindo o cínico, ateu e insensível jornalista e a devota, singela, simplória e, no entanto, determinada senhora, numa busca pela verdade.
Como sempre, não vou estragar a surpresa e detalhar os sucessos e fracassos de Martin e Philomena. Já disse que, na minha modesta avaliação, o filme certamente vale o ingresso.
Me interessa apenas explorar o fato de que, como bom filme sobre (também) religião, se pode dizer que Philomena nos fala de fé, pecado, culpa e redenção – principalmente encarnados na personagem principal –, mas igualmente de conversão: a de Martin Sixsmith que, por assim dizer, redescobre sua vocação de jornalista, graças a Philomena. 
Num momento tão particularmente lamentável do jornalismo brasileiro – mas certamente não só o nosso –, em que velhas tradições de investigação diligente e criteriosa, e o cultivo dos mais comezinhos princípios normativos da profissão – a começar pelo mais basilar de todos: o respeito mínimo à inteligência do leitor – são descarada e perigosamente desleixados, em prol de sabe-se lá que estratégias – jornalísticas?! pseudo-partidárias?! – ou simples modismos editoriais; enfim, numa época dessas, assistir Martin Sixsmith dar suas cabeçadas, mas ainda assim puxar todo o fio da meada do drama de Philomena, e tornar pública uma história tão importante, é sempre um bálsamo.
Rendamos, pois, irmãos, graças à Providência, é claro. 
Mas também a Stephen Frears e a seu elenco, aos bons jornalistas e demais profissionais em crise existencial e, last but not least, a todas as pessoas, mais ou menos escrupulosas, que, no entanto, ao fazer bem o seu trabalho legítimo, nos legam um pouco mais de virtudes públicas (mesmo que eventualmente a serviço de alguns vícios privados).
Graças aos caminhos tortuosos!

domingo, 9 de fevereiro de 2014

Os Lobos de Wall Street, a ganância e as drogas (ou a droga da ganância, entre outras)

Não sei se é efeito de longos anos de deformação profissional, e consequente cultivo de doses essenciais de cinismo, mas há muito tempo que não simpatizava tanto com um grande canalha como assistindo, neste fim de semana, à saga de Jordan Belfort, o tragicômico Lobo de Wall Street, do mestre Scorsese. Sei que é grave, mas não posso deixar de admitir que fiquei comovido com a interpretação que Leo DiCaprio deu ao escroque, e que torci por ele ao longo de todo o filme. Em especial no clímax do seu acerto de contas com a lei e a justiça americanas (e vou parar por aqui na descrição da película; meus desvios de conduta ainda não me levam a desrespeitar os direitos e a curiosidade do leitor que ainda não viu o filme).
Na verdade, o que gostaria de compartilhar, inspirado pelo trio Belfort/Scorsese/DiCaprio, é outra coisa bem diferente. 
Entre tantas leituras possíveis, o que mais me motivou após a sessão foi o papel, ou a metáfora da droga no enredo. Jordan e seu sócio e principal parceiro de aventura, Donnie (Jonah Hill), são completamente viciados em todo o tipo de droga caríssima que se possa imaginar (além de sexo, é claro). E as cenas mais cômicas do filme são exatamente as de esbórnia e de viagens apopléticas, onde Scorsese aproveita para provocar e testar nossa empatia com seus anti-heróis.  
A rigor, porém, me interessa explorar o quanto o drama gira em torno de drogas, num sentido bem mais amplo do termo, e de como é realmente muito difícil resistir a elas. Ou seja: não se trata apenas deste ou daquele tipo específico de vício. Mas sim da necessidade imperiosa de alguma forma, mais ou menos eventual, de desprendimento de si, de auto-anulação, suspensão da dúvida ou da reflexão - ou, se quiser, da consciência -, ou simplesmente de auto-embasbacamento, em prol do prazer, mais ou menos fugaz, seja lá de que forma, sob qual forma.
A ganância alucinada do mercado financeiro, onde o Lobo e sua matilha reinaram (e onde outras faunas ainda mais perigosas certamente proliferam), por exemplo - e que para uma leitura mais óbvia e previsível seria o "x" da película: que outra coisa não é que uma poderosa droga? Ou alguém pode imaginar que racionalidades econômicas ordinárias dêem conta do fascínio viciante do puro jogo de altas apostas, dessa e tantas outras bancas? E isso sem falar nos inúmeros outros jogos, vícios e escapismos que o grande e quase suicida jogo sem leis do mercado pode alavancar, para além de si mesmo, e cujo potencial de excitação já se pode antecipar num vislumbre?
Meu ponto é exatamente este: por que definitivamente não podemos resistir a nos drogar, a nos viciar, de um modo ou de outro? Seja com que mecanismo for: dos mais substantivos aos mais intangíveis? Nos momentos definidos como de "lazer", ou - o que é cada vez mais comum - no "trabalho" (que não se encerra nunca, e invade todos os espaços)? Quem resiste ao engajamento em torno de seja qual for a forma ou conteúdo da auto-ilusão - e olhe que Jordan Belfort deu um duro danado para construir seu castelo de cartas! -, desde que alguma excitação, algum tipo de escape do tédio e do vazio aponte no horizonte, ou no mais longínquo fim de túnel?
De que - ou melhor, de quem - é preciso "escapar"?
Quem é mais ou menos viciado? O lobo especulador e toxicômano ou os inúmeros investidores, de todos os tamanhos, que movimentam essas e outras rodas da fortuna?
Obviamente não espero respostas (nem tenho).
Só me resta, portanto, recomendar o filme e dois diálogos - pelo menos - a que o assistente não deve deixar de atentar: o primeiro almoço de Jordan com seu mentor no mercado, Hanna (interpretado de modo hilário por Matthew McConaughey), e o momento em que Jordan e Donnie se conhecem, num café. Está tudo ali. 
Mas o melhor, como sempre, é simplesmente ceder ao vício e ao escapismo - no caso,  ao menos o do cinema - e mergulhar de cabeça no céu e no inferno de Jordan Belfort. 

domingo, 2 de fevereiro de 2014

Gastos discutíveis, censuras hipócritas e a força do hábito

Há quase duzentos anos, quando as ciências sociais contemporâneas mal engatinhavam, Tocqueville abria o seu genial Democracia na América com uma advertência que até hoje não me parece exatamente bem assimilada: ele nos falava da importância decisiva de algo muito simples e conhecido, mas, talvez por isso mesmo, muitas vezes menosprezado: o hábito. Não o pomposo habitus de Bourdieu (que virou hábito - ou vício? - mencionar em tantas teses e dissertações, à guisa de paradigma para sociologias que talvez não sobrevivam sem paradigma). Não. Tocqueville simplesmente falou-nos do hábito: essa coisa absolutamente banal, e no entanto decisiva para a compreensão de muito do que sucede quotidianamente em sociedade. 
Ora, que outra coisa mais banal e mais cansativa que, por exemplo, esse debate em torno dos gastos da comitiva presidencial em sua recente passagem por Lisboa? A que outra explicação recorrer para dar conta não só de uma eventual falta de sensibilidade política da equipe presidencial, de um lado, da histeria udenista da oposição e de certa mídia hidrófoba, por outro, mas acima de tudo, do profundo tédio que um debate como esse provoca? Precisamos recorrer a algo mais do que ao hábito para dar conta de algo tão irrelevante?
Por exemplo: insistir em explorar o evento vale mesmo à pena para o PSDB e seus parceiros?
Eu sei que estamos em ano de eleição presidencial, que as perspectivas para a oposição não são assim tão animadoras, e que líder de partido da mesma oposição nem sempre tem muito mais a fazer do que ficar fustigando todo e qualquer deslize do governo e sua base, ainda que o motivo, ou o pretexto, seja o mais ridículo. Faz parte do jogo.
Que certos veículos de mídia anti-petista explorem o assunto até as raias da exaustão é, também, se não exatamente justificável, ao menos previsível (já que há anos não fazem outra coisa; com os resultados eleitorais já conhecidos). Aqui certamente há ao menos uma dose excepcional de patologia em ação, mas o contexto geral é compreensível e comum (assunto para muitos outros posts...)
Mas que partidos eventualmente bem servidos de quadros - e que já deveriam estar mais do que acostumados a ser não só estilingue, mas também vidraça - se deixem levar por manobras de um udenismo tão rastaquera, é mesmo de desanimar.
Ou alguém ainda acredita, a essa altura do campeonato, que tentar fazer estardalhaço com tal tipo de conduta governamental mais ou menos desastrada ainda sirva para realmente: a) resguardar recursos públicos eventualmente desperdiçados (o que seria a justificativa ética do vozerio); b) tirar votos da candidata do governo, no caso a própria presidente (o que seria a justificativa partidária e eleitoral para o mesmo)? 
Não creio.
Não vejo nenhuma necessidade de enveredar por teorias conspiratórias ou maquiavelismos de botequim, nem, muito menos, por moralismos hipócritas - outros péssimos hábitos pseudo-intelectuais que gostamos de cultivar - para lidar com essa agenda. Acho que aqui - como de hábito - estamos diante exatamente disso mesmo: (maus) hábitos. Do governo, da oposição e da assistência, mais ou menos ávida e comprometida.
Mas quem disse que hábitos não podem ser modificados e têm sempre de ser mecanicamente "re-produzidos"?
Quem disse que a "agenda habitual" não é passível de renovação?
Certamente que sim.
Mas não vamos muito longe se menosprezarmos a força do hábito.

domingo, 19 de janeiro de 2014

Indignação, tesão e falta de dinheiro (fragmentos de existencialismo chinfrim à beira-mar)

Por que algumas coisas dão certo?
Porque certamente alguém as desejou, e frequentemente se arriscou e trabalhou duro para que acontecesse. 
Não há dúvida de que obviamente esse desejo teve, para se realizar, de contar, obviamente, com determinados pré-requisitos, determinadas pré-condições, apoios, talvez, facilidades, sorte, etc. É claro, também, que tais fatores, digamos, externos, e fundamentais para qualquer tipo de sucesso, nunca devem ser esquecidos - pois configuram aquelas condições essenciais para a possibilidade de qualquer existência humana digna, tanto individual quanto coletivamente, e pelas quais é nossa obrigação zelar politicamente. Mas não quero aqui enfatizá-los em demasia, porque muito freqüentemente servem também de desculpa esfarrapada para aqueles que eventualmente fracassam, ou, o que é bem pior, desistem mesmo antes de tentar e põem a culpa nelas, nas pré-condições: se eu tivesse isso, ou aquilo, se fulano ou beltrano me apoiassem, se o mundo não fosse esse teatro de injustiças, se os homens fossem anjos, se aquela bola que bateu na trave aos 45 minutos tivesse entrado, se o juiz tivesse marcado aquele pênalti, etc....
Não.
Quero falar dessa coisa básica e, no entanto, tão essencial e, de certo modo, tão excepcional: a coragem de tentar; de se mergulhar num projeto, sem medir riscos, ou o que é ainda mais decisivo: sem se deixar dominar pela dúvida que - em qualquer ser humano razoavelmente normal - é inevitável: valerá a pena? O que vou ganhar com tal esforço? O que tenho a perder?
Por que, afinal, muitas vezes se assumem tantos riscos, pessoas submetem-se a vários sacrifícios, para realizar coisas que nem sempre são inevitáveis, ou incontornáveis? Por que indivíduos, empresas ou instituições em situação de relativo conforto, ou considerados já bem sucedidos se arriscam em novos projetos, em casos até em que eventualmente se pode colocar em risco toda a espécie de patrimônio já devidamente acumulado, ou mesmo consolidado? 
Eu, cá com meus velhos e desbotados botões, sempre achei que só existiam no mundo três coisas capazes de me por em movimento: indignação, tesão e falta de dinheiro. 
Sei que a lista não é muito original (graças a D's).
Mas supondo que pelo menos a última razão, ou coisa parecida, não se aplica, por definição, a personagens e coletivos confortáveis ou bem sucedidos, restam, então, as duas primeiras. Bom, de fato se tem coisa que abunda nesse mundo - com trocadilho, por favor - é motivo para indignação ou para tesão.
Será essa, então, a grande resposta para todas as nossas mais fundamentais dúvidas existenciais? Que nessa vida louca e sem maior sentido, não passamos de feixes mais ou menos preguiçosos de ossos e músculos - e cada vez mais gordura - incapazes de qualquer iniciativa maior que a de responder às provocações mais ou menos suficientes feitas a nossas éticas cambiantes e às gônadas (e, é claro, ao bolso - ou ao estômago; mas nem sempre necessariamente nessa ordem)?
A rigor, acho que - essencialmente - é só isso mesmo.
Mas ainda assim correr riscos mantém seu charme e mérito. 
Principalmente porque - parafraseando aquela propaganda: vai que dá certo?

terça-feira, 7 de janeiro de 2014

À guisa de retrospectiva, ou novo capítulo da interminável série "elucubrações extemporâneas": violência e utopia

A violência é inerente à vida em sociedade. Mesmo quando não se manifesta de modo mais explícito e frequentemente indesejável, sob a forma de atos que envolvem agressões físicas e dano pessoal ou material, ela também pode ser percebida como constrangimento, coação, restrição efetiva ou presumida do comportamento, ameaça explícita ou suposta de sanção. Atuando, portanto, como mecanismo mais ou menos latente de repressão e causa de medo, insegurança e sentimento de exclusão ou risco mais ou menos iminente à integridade física ou moral da pessoa. 
A rigor, ela é simplesmente constitutiva da vida em todas e quaisquer das suas formas, das mais naturais - os documentários sobre o mundo animal que nos digam! - às mais "civilizadas", como diria o sociólogo Norbert Elias.  
A questão do debate sobre a violência é, portanto, e como sempre, muito mais a de que significados atribuímos às diferentes formas de violência, e sobre quais destas devem ou não ser toleradas e como. E levando-se em conta, desde logo, que algumas dessas formas serão forçosamente incorporadas, uma vez que são inerentes à vida social. 
Assim, o que chamamos - talvez com razão - de vida civilizada é apenas aquela em que as formas mais explícitas de violência física, mas também verbal, passam a ser exorcizadas pela Lei e/ou pelos costumes mais aceitos e devidamente socializados. E talvez, por isso mesmo, deixamos de considerar como violências - certamente de outra forma ou natureza - aqueles outros constrangimentos e limites, que podem, no entanto, nos ameaçar de forma ainda mais poderosa, ou incontrastável, deixando muito mais clara e evidente, talvez até de modo ainda mais desesperador, a nossa efetiva impotência individual, diante das grandes forças ao mesmo tempo humanas e inumanas da Sociedade, do Mercado, e do Estado.  
O primeiro e mais fundamental problema filosófico, ético e político colocado por essas circunstâncias não é, pois, propriamente reconhecer a existência onipresente de tal violência latente - ou "simbólica", como diria Bourdieu, ou "biopolítica", como diria Foucault, ou seja lá qual for a formulação mais ou menos "libertária" alternativa e favorita do leitor. Até aí, morreu Pierre, ou Michel. 
Não.
O mais importante é incorporar o fato de que se a violência pode ser tudo isso, ela não só é efetivamente onipresente, mas, portanto, inevitável. Ou seja: não há margem efetiva para utopias que não incorporem tais formas inevitáveis de violência como parte do seu pacote.
E é por isso que o realismo de Elias - mas também o de Bourdieu, de Foucault, e companhia ilimitada - não deixa de remeter a outro horizonte utópico, talvez apenas um pouco mais modesto: o de uma Sociedade, um Mercado, um Estado, onde as únicas formas de violência toleradas seriam justamente certas modalidades latentes e inevitáveis. E de preferência aquelas cujos efeitos perversos de geração de sentimentos mais ou menos difusos e imprecisos - mas não menos reais - de repressão, medo, insegurança, risco e impotência pudessem ser democraticamente, ou seja, mais ampla e igualitariamente, minorados.  
Uma certa "civilização", pois. Mesmo que este seja um mote que pareça atrair cada vez menos aderentes. Ou aderentes cada vez menos entusiasmados.

(Versão inicial de artigo que não cheguei a publicar - nada de surpreendente, pois - inspirado por certos eventos de 2013 - mas, infelizmente, válido para muitos outros contextos)