O caráter aparentemente inédito do golpe em
desenvolvimento no Brasil, hoje, coloca para nós uma série de graves problemas
e desafios novos. Um dos mais sérios tem a ver com a crescente autonomia e com
as temporalidades do processo em si, o que impacta profundamente suas
consequências e significados. Em sentido amplo, e independentemente dos
próximos capítulos dessa novela de profundo mau gosto e agouro, se pode dizer
que o ataque à democracia já foi devidamente consumado. Mesmo que o impeachment
de Dilma Rousseff ainda pudesse ser efetivamente barrado ou revertido pelo
Legislativo, ou anulado pelo STF, o sacrifício da Carta de 1988 e a consequente
ruptura institucional – e também para-institucional, ou meta-institucional –,
depois de três décadas, já é fato.
Não digo isso para acirrar ânimos – como se fosse
necessário! –, nem, muito menos, para minimizar ou desanimar os esforços dos
que se opõem ao golpe, em suas tentativas de, ainda, reverter o quadro atual,
ou já se preparar para fazer frente ao que, tudo indica, nos aguarda de ruim. Também
não menosprezo as diferenças de cenários possíveis e antagônicos entre as prioridades
de um provável governo Temer e as de uma ressurreição do mandato da atual
presidente (ou ainda outra alternativa, menos visível hoje). De modo algum.
Mas quando nos voltamos para o quadro mais amplo do
funcionamento das instituições e do contexto ético e moral da vida política e
social no país, ou seja, nos voltamos para as expectativas que se pode nutrir
acerca do modus vivendi e do modus operandi na sociedade
brasileira daqui em diante, o quadro é desolador e, sinto muito, as
expectativas são as piores.
Ao contrário das costumeiras quarteladas do passado –
cujo precedente parece levar muitos incautos a pretender que na ausência delas
não se pode sequer falar em golpe – a subversão "pacífica" da ordem
constitucional que assistimos já começa a produzir seus efeitos perniciosos
muito antes de qualquer desenlace, além de certamente deixar sequelas que serão
muito mais duradouras do que aquelas que muitas vezes uma escaramuça militar à
moda antiga poderia nos legar.
Se é que se pode dizer isso, uma das
"vantagens" dos velhos putsches militares, paramilitares, ou
civil-militares, era a sua rapidez e sua frequente e relativa exterioridade com
relação à sociedade. Mesmo quando assumiam feições efetivamente revolucionárias
– e assim ultrapassavam, de algum modo, o âmbito restrito de seus conspiradores
– tais intervenções, em geral, eram relativamente curtas. Ou davam certo, e se
impunham pela força ou pela dissuasão, sem maiores subterfúgios, impondo seus diktats
à sociedade mais ou menos impotente, inerte, conivente, surpresa, contrariada
ou indiferente – e o tempo se encarregava de "legitimá-los", ou
descartá-los, no vencimento de suas validades; em geral restritas estas à
vigência de sua capacidade de obter o apoio militar necessário e impor o temor,
pura e simplesmente –, ou então eram rapidamente sufocados e a ordem legal
vigente se fortalecia (ao menos por algum tempo). De qualquer modo, dado o
caráter extemporâneo, rápido, às vezes espetacular de tais intervenções, mas
acima de tudo a sua clara intenção e expressão disruptiva, o retorno à
"normalidade" podia se dar mais pronta e facilmente. As próprias
expressões autolegitimadoras típicas – "intervenções salvadoras",
"regime de exceção", etc. – traíam esse caráter assumidamente
excepcional e efêmero atribuído a tais movimentos.
Ora, o primeiro e mais grave problema do "putsch"
em evolução agora é o seu simulacro rastaquera de legalidade,
constitucionalidade e, portanto, normalidade democrática. É um tipo de golpe
aparentemente inédito no Brasil, e feito, por assim dizer, por dentro das
instituições, tanto as de Estado quanto de certa Sociedade Civil. Corroendo-as intestinamente – e podemos aqui levar a metáfora às suas últimas consequências,
inclusive as olfativas – e expondo suas vísceras à luz do sol.
O segundo e também terrível aspecto do processo é o da
sua temporalidade. Teve sua origem num relativamente longo período de maturação
e arregimentação mais ou menos sistemática de forças e argumentos que
convergiram para a caracterização de um veredito – culpada! – muito antes (a
rigor, independentemente) de que houvesse propriamente o correspondente crime.
Desse modo, avalizou-se toda e qualquer chicana jurídica, toda e qualquer
manobra política espúria, toda e qualquer pirotecnia justiceira, toda e
qualquer manipulação grosseira de informações e imagens públicas, toda e
qualquer mobilização de poderosos recursos econômicos e logísticos – de fontes
talvez idôneas, ou nem tanto –, mas todos necessários à produção de
determinados resultados políticos cuja depuração paulatina os torna cada vez
mais bem definidos: a reversão da decisão popular nas urnas de 2014, a
usurpação da presidência da República, a inviabilização de qualquer candidatura
futura da principal liderança política popular do país, e, se possível, o
extermínio de seu partido e de tudo o que ele ainda possa representar (em
vários sentidos). Tudo isso, é claro, sem a menor cerimônia ou preocupação com
a legalidade, a constitucionalidade, a manutenção das instituições, em suma,
com a legitimidade do sistema político e jurídico e o equilíbrio mínimo da
ordem social e econômica. Assim, além de deitar raízes num considerável
intervalo prévio de tempo e, por assim dizer, de preparação – certamente coletiva,
mas de modo algum necessária e inteiramente deliberada –, os efeitos perversos
dessa aventura irresponsável se farão notar por muito mais ainda no futuro.
Sabe-se lá até quando. Já que a grande e sintética lição assim legada por essa
versão pseudo-maquiavélica tupiniquim de realismo político, a todos e a
qualquer um, de alto a baixo, do mais humilde cidadão ao mais poderoso membro
de qualquer elite, é uma só: vale tudo.
Por isso mesmo, e por fim, o último e talvez mais
lamentável aspecto da empreitada é justamente o de sua inegável
“representatividade” relativa, de suas estreitas vinculações com certa parcela
significativa de nossa sociedade. Certamente que aqui não se enxerga nenhum
traço revolucionário. Justamente ao contrário disso, é um movimento que ganha
talvez seu principal empuxo das profundezas mais reacionárias da sociedade
brasileira. Mas acima, ou ao lado, de tais forças, e provavelmente superando-as
numericamente em muito, parecem alinhar-se, com maior, menor ou nenhum
entusiasmo, contingentes diversos e mais indefinidos de cidadãos brasileiros,
movidos pelas mais diversas razões – muitas delas, aliás, merecedoras de grande
respeito e atenção –, que se igualam, porém, no mesmo traço basilar e comum: um
olímpico desprezo, ou indiferença, pela atual democracia representativa, suas
regras, seus riscos e custos. Prontos a abrir mão, desse modo, também dos
benefícios e bens coletivos que tal regime – e que se saiba até aqui só ele – é
capaz de fornecer.
E é justamente essa última experiência democrática,
tão jovem e tão rara em nossa história, e tão imprescindível para qualquer real
solução de nossos muitos problemas políticos, econômicos e sociais, que o golpe
em curso já feriu de morte. Sejam quais forem os seus próximos
desenvolvimentos.
Sei que para muitos – e desconfio que são e serão
muitos, mesmo, cada vez mais –, como se diz, a luta continua. E parece estar
apenas começando.
Quanto a isso não arrisco prognósticos, nem a curto ou
médio prazo.
Mas democracia neste país? De novo? Tal como tivemos o
privilégio de desfrutar nas últimas três décadas?
Voltará, com certeza. Mas só Deus sabe quando.