sábado, 26 de dezembro de 2015

Ingratidão (às vésperas do Natal)

Talvez se não fossem tão míopes, nem andassem tão mal acompanhadas, e tão mal aconselhadas, as forças de oposição ao Governo Federal tivessem, na verdade, agradecido ao Supremo Tribunal Federal por suas recentes decisões com relação ao rito do processo de impeachment.
É certo que agora o mesmo se tornará mais lento, mais arriscado e muito mais trabalhoso para quem quiser cassar o mandato da presidente. E não foi à toa que o Planalto e seus aliados comemoraram as decisões relativas às regras para a formação da comissão especial da Câmara, que pode ou não recomendar a abertura do processo ao Plenário da Casa, e ao papel do Senado ainda nessa primeira fase de possível afastamento provisório da Chefa do Poder Executivo. Afinal, além de reverter a derrota inicial na eleição secreta para a comissão especial, e de aumentar o número de oportunidades para uma eventual sustação e arquivamento do pedido acolhido pela presidência da Câmara, a decisão do STF, em si, dá novo fôlego e mais tempo a Dilma (mesmo diante da avaliação dúbia de que teria sido estrategicamente melhor para ela suspender o recesso parlamentar e fazer o impeachment tramitar mais imediatamente). Tempo que ao longo desse primeiro ano se tornou um artigo tão escasso para o Governo quanto apoio e tranquilidade (e, também, consequentemente, maior consistência e eficácia).
Mas o que foi recebido como revés para a oposição, pode, no médio e longo prazo, se constituir para esta uma importante vantagem. Pois em caso de sucesso final na busca por seu objetivo – o impedimento de Dilma e a exclusão do PT do poder –, a decisão do Supremo certamente pode dar a tal resultado, que já seria suficientemente problemático em condições mais favoráveis que as atuais, ao menos uma legitimidade maior do que se poderia aspirar se tivessem sido mantidas (ou renovadas) as decisões suspeitas que, acreditaram alguns, tornariam o impeachment favas contadas. Até segunda ordem, graças à interpretação majoritária do STF, ninguém poderá dizer que no caso atual não se observou o rito jurídico que presidiu o mesmo tipo de processo no caso de Fernando Collor, nem que houve desrespeito a alguma das principais instâncias do sistema republicano, ou que manobras espúrias teriam sido decisivas para definir o rumo dos acontecimentos, conspurcando assim a por si só grave decisão de eventual deposição legal de uma presidente legitimamente eleita.
Ou seja: se o impeachment passar – atendendo, é claro, aos devidos requisitos legais – ele terá de ser creditado exclusivamente a suas variáveis políticas, quer dizer: relativas ao jogo partidário e às dinâmicas de interação entre o Executivo e o Legislativo, e ao contexto específico de tomada de sua decisão (o que, obviamente, também não exclui de modo algum a participação da tal da Sociedade Civil, o que quer que se entenda por "opinião pública", e o movimento das ruas). Variáveis tão essenciais e legítimas quanto a participação político-institucional do Supremo no funcionamento do nosso presidencialismo.
Sem dúvida que, mesmo após a intervenção da mais alta instância do Judiciário, não há garantia alguma de que esse processo possa se encerrar rapidamente e sem traumas, seja em que direção for, nem muito menos de que poderemos superar facilmente as sequelas institucionais que inevitavelmente serão deixadas por ele. Ainda mais com base no relativamente frágil pretexto jurídico alegado. E é claro que ainda há muito tempo disponível para todo o tipo de manobras, chicanas, bravatas e profecias apressadas, do gênero que vimos e ouvimos a torto e a direito em 2015.
Mas já que resolveu se jogar nessa aventura, e testar os limites das nossas instituições democráticas, a oposição agora, mesmo que aparentemente contrariada, pode tentar trilhar um caminho talvez mais longo, e talvez com mais obstáculos, mas certamente mais seguro e um pouco mais distante daquele abismo a que me referi aqui outro dia: o abismo da deslegitimação institucional e da instabilidade política recorrente.

E com essa nota um pouco menos pessimista, desejo a todos um Feliz Natal e um 2016 melhor do que o ano que se encerra – o que não deveria ser difícil –, mas, se possível, também superior ao que andam profetizando por aí para os dias que nos aguardam.

domingo, 13 de dezembro de 2015

Pedalando à beira do abismo

Há algo de profundamente assustador no modo ao mesmo tempo ansioso e otimista com que as forças de oposição parecem saborear cada dificuldade que se apresenta para o Governo Dilma Rousseff em seu esforço diário de sobrevivência.
É difícil entender de onde vem tamanho entusiasmo. Se se tratasse simplesmente de se contar com o possível apeamento de Dilma e do PT do poder, coisa que efetivamente poderemos assistir nos próximos meses, vá lá. Afinal, que são mais alguns meses de ansiedade e excitação para quem pode estar há mais de uma década na fila? (alguns então remoendo suas frustrações e seu ressentimento por conta da autêntica usurpação que julgam terem sofrido desde que – graças a seu "maldito eleitorado" – esses petistas arrogantes ousaram assumir o comando deste vasto e cada vez mais complicado engenho tropical).
Mas quais as perspectivas que, acreditam eles, se abririam com a consecução de tal objetivo básico, essencial e, aparentemente, autossuficiente? E o que imaginam pode ocorrer ao longo dos meses em que não somente estará sendo decidido o destino do atual mandato presidencial, mas também, sem nenhum exagero, o futuro mais e menos imediato do país?
Imaginemos que, de um jeito ou de outro, a comissão especial convocada para examinar a proposta de impeachment dos doutos juristas se instalará e proferirá seu veredito. Suponhamos que este último seja pela possibilidade de abertura do dito processo por meio de uma decisão amplamente majoritária do plenário da Câmara dos Deputados. E que tal votação se dê, talvez, na melhor (?!) das hipóteses, ainda em janeiro. E que uma vez aprovado o afastamento provisório da presidente, tenhamos pela frente ainda alguns outros meses até que o Senado profira a sua sentença definitiva. Só a título de exemplo, entre a abertura dos trabalhos para o julgamento político do presidente Fernando Collor, e sua deposição definitiva, foi-se embora boa parte do segundo semestre de 1992.
Ora, independentemente do possível – e, se chegarmos até esta etapa, praticamente certo – desfecho, perdoem-me a cândida pergunta: em que país pensam que estaremos vivendo? Como creem estará nossa sociedade e nossa economia?
E que apostas fazem em torno dos possíveis novos governantes e sua nova coalizão? Quem serão eles? Como governarão? Até quando?
Por outro lado, que expectativas têm acerca de como se comportarão não só os membros do atual governo, se efetivamente depostos, mas bem além deles, seu partido, seus aliados e demais setores da nossa sociedade? Como creem reagirão estes que mesmo insatisfeitos hoje com o comando da presidente em exercício se mostram firmes na defesa de seu mandato, talvez não confiem muito nos prováveis beneficiários de sua eventual deposição, nem apreciam as perspectivas que se abrem com sua chegada ao poder, nem, muito menos ainda, os métodos que vêm sendo utilizados para se produzir tal resultado?
E tentando enxergar ainda um pouco mais longe: como esperam obter aquiescência para suas eventuais vitórias eleitorais futuras, para o exercício de seus eventuais futuros governos?
Há quem possa imaginar ser possível uma deposição institucional e ao mesmo tempo cirúrgica e indolor de um presidente eleito no Brasil. Quase nunca é.
Ou que basta a mudança no leme do navio para se acertar as rotas da economia num novo equilíbrio virtuoso.
Negativo. Mal dá para o começo. E pode até complicar ainda mais o meio de campo (quem quiser que retome a história errática do Governo Itamar Franco para lembrar quanto tempo, quanta tentativa e erro foram precisos até se encontrar um rumo, com o Plano Real; só não esqueçam também de recuperar e comparar o contexto político da época e sua correlação de forças, com o momento atual; aqui cessam todas as semelhanças – e qualquer otimismo pretensamente consistente).
Tanto para uma quanto para outra solução, a política e a econômica, é preciso muito mais. Principalmente num contexto político já radicalizado e polarizado, em que as divisões partidárias assumem cada vez mais clara conotação social.
Pra começo de conversa, é preciso legalidade, legitimidade, estabilidade, e um mínimo de previsibilidade. Claro que há outros fatores importantes também, como alguma competência, perseverança, coragem e sorte (por vezes, muita sorte). Mas o problema mais grave com relação aos quatro primeiros requisitos é que, além de demandar tempo, para eles não basta iniciativa e mérito individual. Ou eles são produzidos coletivamente, pela interação contraditória, mas relativamente controlada, de todas as diferentes e conflitantes vontades – e é para isso que existem as famosas "instituições" – ou então,... babau.
Legalidade, legitimidade, estabilidade e previsibilidade não são, portanto, meras palavras bonitas. São pré-requisitos essenciais à vida social e à solução de seus muitos problemas, e de cuja necessidade, infelizmente, muitos só se dão conta quando efetivamente a perdem.
Certamente que o governo atual também tem sua significativa parcela de responsabilidade neste processo de erosão das aludidas pré-condições institucionais. Mas a tentativa de sua inviabilização a qualquer custo, desde o momento de posse, inclusive, não vem somente simplesmente paralisando-o e impedindo-o – de fato, se não ainda de “Direito” –, de contribuir com qualquer tentativa eficiente de superação das grandes dificuldades atuais. Pode igualmente estender a saída e a luz no fim desse túnel para muito longe de nossas vistas.
E seria uma trágica ironia se por conta de eventuais "pedaladas" mal dadas se produzisse uma tentativa afoita de concerto de algumas bicicletas defeituosas, somente para colocá-las freneticamente no rumo de uma autêntica corrida de obstáculos à beira do precipício.

segunda-feira, 7 de dezembro de 2015

Ser ou não ser? (Fora da zona de conforto)

Um dos sinais inequívocos de que alguém se encontra mesmo diante de uma crise autêntica é o fato de que não é possível mais permanecer e se sentir relativamente confortável, ou ao menos não tão confortável quanto antes. Muitas vezes o conforto em que alguém se mantém por um bom tempo só é efetivamente reconhecido no momento em que ele se perde (daí aquele clássico chavão do "eu era feliz e não sabia").
Com o agravamento das crises política e econômica atuais, muita gente certamente já talvez nem lembre o que é "conforto".
Mas há aqueles para quem, acredito, a hora da verdade está chegando somente agora.
Refiro-me, nesse caso, ao Partido do Movimento Democrático Brasileiro, nosso velho e conhecido PMDB.
Desde os tempos já míticos em que liderou a chamada "Transição Democrática", no começo da década de 1980, até seu apogeu na Assembleia Nacional Constituinte (1987-88) – e que marcou também, obviamente, o começo do declínio de sua preeminência política – o antigo partido de Ulysses veio se acostumando a desempenhar no jogo político nacional um papel decisivo, porém secundário: o de observador mais ou menos alinhado das grandes disputas entre PT e PSDB, mas também de cobiçado e quase inevitável aliado dos governos de uns ou outros, em função do tamanho de suas bancadas e de sua capilaridade e poder no sistema federativo.
Não por acaso, já lá se vão mais de vinte anos desde a última vez que o PMDB apresentou candidato próprio às eleições presidenciais (Orestes Quércia, que ficou em quarto lugar em 1994). De lá para cá o partido se acostumou a maximizar seus recursos nas demais eleições de modo a se tornar sempre indispensável – ou pelo menos impossível de se ignorar – por quem quer que governe o país.
Uma posição bastante confortável, e por uma série de razões: 1) primeiro, porque abrindo mão de disputar a presidência com candidato próprio, e se concentrando na manutenção e aprimoramento de sua máquina nacional, ficou muito mais fácil e confortável administrar e acomodar as suas diversas facções e lideranças regionais; ainda mais diante da perspectiva quase sempre renovada de adesão aos governos federais eleitos e participação de destaque na distribuição dos cargos e recursos da administração federal (uma vez conservada, claro, a aludida força numérica do partido no Congresso e em vários estados e municípios); 2) segundo, porque ao ser quase sempre parte importante do governo, mas não seu principal responsável – coisa que naturalmente cabe aos partidos dos presidentes – o PMDB também usufrui de seus eventuais bônus, sem ter de necessariamente arcar com seus ônus; quando o governo vai bem, fatura-se ao menos parte dos créditos (fora os benefícios já aferidos pelo controle de partes da máquina); quando ele vai mal, diluem-se os custos, com o foco da insatisfação se dirigindo predominantemente para os protagonistas. De fato, se nosso sistema é mesmo o tal "presidencialismo de coalizão", ninguém parece tê-lo praticado melhor que o partido do atual vice-presidente da República.
Com a presidente Dilma na berlinda do impeachment, porém, a coisa muda inteiramente de figura. Tal como irá suceder com todos os partidos e todas as forças políticas do país, o processo de radicalização por que estamos passando certamente vai agora atingir novos patamares de polarização e vai ser quase impossível se manter em cima do muro. Mas para o PMDB, por suas funções estratégicas tanto no Executivo quanto no Legislativo federais, o desafio é muito maior.
A primeira dificuldade do partido na conjuntura atual, portanto, será o da manutenção de sua pretensa unidade. Antes, na zona de conforto, era fácil lidar com dissidências e disputas internas. Agora serão outros quinhentos. Não só por conta das divergências naturais e projetos políticos conflitantes de seus líderes e grupos. Mas também porque a perspectiva de eventual volta ao proscênio, ainda mais nessa conjuntura crítica, vai tornar os riscos e os custos de transição – e de transação – muito mais elevados. Seja interna ou externamente ao partido.
Assim, escolher (re)assumir o comando – com o eventual impedimento da presidente (pressupondo, é claro, que ela venha a cair sozinha, e que não tenhamos eleições presidenciais antes de 2018) – é uma aposta tão tentadora quanto temerária para o PMDB. Por um lado, pode representar uma oportunidade histórica singular e rara de retomada real do poder para a sigla. Por outro, será o fim da era de participação relativamente fácil e confortável no governo de qualquer um dos rivais. Um caminho sem volta (pelo menos em médio prazo).
Já que, afinal, qual será a credibilidade do PMDB como grande parceiro de coalizão se agora voltar as costas ao governo do PT? Quem seriam os parceiros preferenciais de um novo governo tucano, ou mesmo de outras siglas menos prováveis?
É por essas e outras que, talvez, o grande dilema peemedebista também não possa mais se restringir a uma simples escolha de qual outro protagonista seguir, se o PT ou o PSDB, conforme os humores do eleitorado ou das pesquisas de opinião. Ator principal ou coadjuvante, mais ou menos heterogêneo, grande ou não tão grande, vai ser preciso encontrar um novo lugar para si na economia política partidária brasileira. E seja lá com que grau de conforto.

segunda-feira, 12 de outubro de 2015

O Tao do tal financiamento das campanhas eleitorais (pós-decisão do STF)

Saíram há algum tempo n'O Globo duas ótimas matérias do colega Fábio Vasconcellos sobre os possíveis impactos da recente decisão do Supremo Tribunal Federal sobre a inconstitucionalidade das doações de empresas para fins de financiamento de campanhas.
Atendendo à sua simpática "provocação", dei tratos à bola sobre o tema dos impactos específicos da decisão sobre a propaganda eleitoral, não sem antes relembrá-lo de que não sou especialista no assunto mais quente do financiamento em si, suas dimensões éticas e práticas mais polêmicas (ao contrário de outros colegas que ele teve o cuidado de também entrevistar).
Mas como matéria de jornal é sempre aquele esforço de síntese e velocidade, vou explorar aqui alguns dos temas que me ocorreram e que, compreensível e naturalmente, ele não pode aproveitar no artigo (não entrei então – nem vou agora – no mérito da legitimidade em si do financiamento privado – sobre o qual não tenho posição fechada, muito menos ideológica; nem sobre os argumentos de que o fim do financiamento por empresas vai criar outros tipos de desigualdade na competição eleitoral; na prática, tal previsão pode até fazer algum sentido – mas vindo de onde vem, soa muito mais como pura e simples hipocrisia).
O que tinha a sugerir é que, tal como saiu publicado, não vejo nenhum sinal de redução da competitividade, muito menos da radicalização na luta partidária brasileira para os próximos anos. Muito pelo contrário. Com a continuidade esperada da crise econômica – ou uma lenta saída da mesma – e os possíveis desdobramentos – em grande medida, imprevisíveis – da crise política atual, vejo muita turbulência à frente. E isso obviamente vai se refletir nas campanhas e na busca por recursos. De fato, como disse então, parece-me que perder politicamente vai ficar cada vez mais caro para todos os principais competidores.
Por isso, creio que o mais provável de ocorrer será uma adequação por parte de partidos e candidatos à realidade de um Horário de Propaganda Eleitoral Gratuita (HPEG) e de campanha tradicional com menos recursos e, ao mesmo tempo, a busca de criação de novas alternativas de financiamento ou apoio indireto a certos candidatos ou partidos.
Assim, é bastante possível que mudem as táticas, estratégias e formatos de campanha, e, consequentemente, a distribuição dos recursos disponíveis por diferentes mídias e formas de mobilização. Se os recursos privados realmente escassearem devemos ter uma queda de investimento em produção para a propaganda na TV – que ainda vai continuar sendo decisiva, mas vai ter que se baratear – e certamente vamos ver grandes esforços e novidades na Internet e nas redes sociais. Ou seja: essa decisão, no mínimo, deverá ser um ótimo estímulo à criatividade da rapaziada.
Mas também veremos com certeza mais investimentos paralelos de apoiadores economicamente poderosos, por meio de “RP” ou “assessorias de imprensa” – ou pura e simples interferência financeira –, inclusive (e talvez principalmente) nas mídias mais tradicionais (as que obviamente sobreviverem à sua crise atual), e que poderão ficar ainda mais tendenciosas e proto-partidárias do que já estão hoje.
Finalmente, não me espantaria se passássemos a conviver também nas nossas eleições com a proliferação de versões tupiniquins de coisas do tipo “PAC” ou até mesmo “SuperPAC”: aqueles riquíssimos comitês informais de apoio aos candidatos que são hoje uma verdadeira praga nas campanhas norte-americanas.
Ou seja: a decisão do STF foi importante, não só simbólica e doutrinariamente, do ponto de vista do Direito Constitucional Democrático, como certamente também pode complicar e muito o famoso "caixa dois" e, portanto, a vida dos corruptores e corruptos dos processos eleitorais. Mas o poder econômico sempre vai tentar encontrar modos de desequilibrar o jogo a seu favor.
Aparentemente, ou ao menos no importante campo simbólico, os defensores da igualdade política certamente venceram uma batalha. Mas essa guerra é velha e continuará sendo longa e difícil para eles.

sábado, 22 de agosto de 2015

Tempos

Um dos fatores que gera mais incerteza e instabilidade, na vida em geral, mas em particular na política, é a dificuldade em se estabelecer para a ação um determinado prazo, ou horizonte. Ou seja: não saber exatamente quando algum processo deve terminar, mesmo que se trate apenas de uma etapa (ou de algo que estará sempre em transformação, e que nunca obviamente ficará pronto, em caráter efetivamente definitivo). Por exemplo: quando devo concluir a demolição de uma parte de um imóvel, para poder prever minimamente o prazo de reerguimento da estrutura, e, finalmente, do acabamento e entrega da nova construção?
O que, porém, talvez complique ainda mais esse tipo de indefinição – principalmente no mundo político, que é sempre "obra aberta" e, além do mais, coletiva! – é que não somente temos de contar com as nossas próprias dúvidas sobre prazos, mas também com uma grande diversidade de perspectivas temporais diferentes, junto aos demais atores do jogo. Quer dizer, nós até podemos saber muito bem onde se situa no tempo ou no calendário o nosso principal horizonte de expectativas políticas, mas nossos aliados, rivais e coadjuvantes podem fazer – e em geral fazem – cálculos temporais completamente diferentes e que certamente vão entrar em atrito ou oposição aos nossos, gerando desdobramentos em grande medida imprevisíveis.
Observe-se agora, por exemplo óbvio, o que sucede no atual contexto político nacional: quem pode definir com clareza qual o seu horizonte temporal principal e, ainda mais, o dos demais atores que lhe são estratégicos?
Se primeiramente nos ativermos apenas aos chamados protagonistas institucionais, já podemos perceber o quanto se diferenciam em seu comportamento os que primordialmente miram hoje as eleições gerais de 2018, daqueles que, antes disso, estão muito mais preocupados com os pleitos municipais, do ano que vem. Já é uma bela diferença de perspectiva. Mas o que dizer então daqueles que, tudo indica, não conseguiram ainda sair de 2014? Para estes, 2018 se encontra insuportavelmente distante, e cada dia que passa pode ser vivido com enorme ansiedade.
Se ampliarmos o foco da nossa observação, contudo, veremos que parece haver muitas outras temporalidades conformando as perspectivas e expectativas dos vários atores políticos em ação. No campo mais amplo da chamada Sociedade Civil e da mobilização popular, a oferta certamente é bem mais ampla. Seja para frente ou para trás. Com efeito, volta e meia tenho a impressão de que estou ouvindo vozes situadas não no presente, ou direcionadas para o futuro mais imediato, mas sim ecoando anos já distantes: 1992, 1989, 1988, 1984... Ou ainda mais longe: 1968... 1964!
E, é claro, não podemos nunca esquecer e menosprezar as variadíssimas formas do que chamo de hipermetropia política e ideológica: a manutenção de um foco sempre num futuro indefinido – mais ou menos utópico, ou distópico – que leva o paciente a perder a noção do que está mais próximo no tempo ou no espaço, em nome de apostas no que poderá – ou que, segundo ele, deverá – vir a ser. Mesmo que a busca da ação em função do futuro, na verdade comprometa seriamente a situação do agente hoje, no presente.
Nada disso, porém, deve nos fazer esquecer que para o Governo Federal, o principal ator estratégico do jogo, não parece existir, no momento atual, nenhum horizonte temporal mais importante do que o presente imediato. Ao contrário do que sucede com aqueles que não conseguem deixar de pensar – e viver – em 2014, para os protagonistas do drama, a presidente Dilma, seu governo e seu partido, há motivos de sobra para comemorar cada dia de cumprimento de seu mandato – talvez, de sobrevida. Mas acima de tudo é imperativo trabalhar incessantemente para garantir não somente a manutenção de tal perspectiva temporal mínima, como também qualquer esperança de ampliação da mesma para o futuro. E quando digo trabalhar, isso deve ser compreendido no sentido mais amplo e variado possível. Não apenas administrar o que lhe cabe, com tudo o que isso obviamente já implica. Mas trabalhar principalmente no sentido mais especificamente político do termo: incansavelmente dialogar, negociar, propor e tentar pautar o debate e exercer as prerrogativas institucionais e de liderança política que cabem ao Poder Executivo Federal no Brasil. Não existe outra maneira de se ampliar o seu horizonte de expectativas – e, talvez, de se preservar o mandato.
Além do mais porque quando falamos de diversos horizontes temporais pode restar aqui, finalmente, uma boa notícia para a presidente: é bastante possível que para uma grande maioria de brasileiros o cálculo temporal de prioridades também seja igualmente curto, imediato, e o horizonte inapelavelmente presente. Aqueles que são regidos pelas imposições cotidianas da busca pela sobrevivência e pela manutenção de um mínimo de condições de uma vida digna numa sociedade moderna, competitiva e ainda tão desigual e brutal como a nossa.

domingo, 28 de junho de 2015

Para meus alunos VII

Para tornar mais clara a atual distribuição das cadeiras por Estados da Federação na Câmara dos Deputados, em Brasília, de acordo com resolução do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), com base em dados do IBGE. Clique aqui.


quinta-feira, 18 de junho de 2015

Para meus alunos VI

Para acompanhar e entender melhor a tramitação do Projeto de Redução da Maioridade Penal, no Congresso Nacional:


sábado, 13 de junho de 2015

Representatividade efetiva (em linha reta)

Desde os tempos idos em que éramos eternos campeões mundiais de futebol, venho dizendo que, entre outros títulos possíveis, também éramos imbatíveis em outra modalidade: a da hipocrisia. Reconheço que podia e posso estar sendo muito severo e precipitado – e até incorrendo, em certa medida, no pecado mortal do complexo de viralatice nacional típico –, mas depois de ler os resultados de pesquisa de opinião recente, sobre a imagem e avaliação dos nossos parlamentares, não tenho nenhuma dúvida em afirmar: se não somos exatamente os campeões mundiais da hipocrisia, certamente estamos no rol dos favoritos também nesse quesito.
Digo hipocrisia porque toda a vez que escuto alguma ladainha de alguma suposta autoridade ética – em especial empresários, jornalistas, intelectuais, artistas e celebridades em geral –, indignada com o comportamento ou os discursos de certos exemplares de nossa classe de representantes, me vem sempre à mente aquele belo poema de Álvaro de Campos. E fico aqui pensando nos modelos de lealdade, meritocracia, e ausência total de panelinhas e práticas nepotistas que são, para nosso orgulho, nossos ambientes profissionais e corporativos, a mídia, os círculos acadêmicos, os meios artísticos e intelectuais e, por último, mas não menos importante, as sacrossantas esferas da iniciativa privada e da aclamada sociedade civil.
É por essas e outras que não consigo me preocupar quando ouço conversa sobre "crise de representação". Lá fora, quem sabe? (Duvido). Mas no Brasil??!! Como negar que tudo aquilo de que se acusa unilateralmente nossos políticos de ser espelha sem a menor dificuldade muitas das práticas usuais com que esbarramos cotidianamente em tantos ambientes? Se nossa classe política é toda ela composta de uma coleção de representantes que precisam ser tratados com o rigor e a severidade dignas de condenados às galés, o que dizer da sociedade que eles assim tão bem representam? Afinal: quem pode exigir maior, ou melhor, representatividade do que esta?
O mais impressionante é o modo fácil com que assim se transferem todas as responsabilidades para tais incorrigíveis bodes expiatórios, e muitos de nós se inflamam para condenar ativamente aqueles mesmos desvios, ou equivalentes que, no entanto – talvez em escala monetária muito menos elevada, reconheço –, somos igualmente capazes de relevar, quando mudam os personagens ou circunstâncias.
O mais irônico – ou trágico – nessa história toda é que essa onda de indignação seletiva e opróbrio fácil da política e dos políticos, se efetivamente traduzida em medidas "reformadoras" – como redução de mandatos, impossibilidade de reeleição para todos ou quase todos os cargos,  restrição da propaganda eleitoral de televisão, voto facultativo – pode justamente facilitar ainda mais a vida dos exemplares efetivamente mais suspeitos da aludida classe de Genis, ou seja, os apaniguados do poder econômico desigual e os compradores de voto, entre outros espécimes, além de fomentar a descontinuidade e a irresponsabilidade administrativa geral.
Aliás, arrisco-me candidamente a conjeturar que não é por outras razões que estão sendo propostas. Muito distantes, portanto, das preocupações moralistas e infanto-juvenis da legião de indignados e hipócritas que se arvoram por toda a parte em consciência moral nacional e palmatórias da humanidade.
Mas o que se pode fazer, afinal, diante do eventual sucesso legislativo dos proponentes e potenciais beneficiários de tais medidas "moralizadoras"?
Além de ser parte do jogo democrático real – do qual sempre pode constar a difícil arte de engolir sapos –, talvez seja também apenas parte do mérito peculiar e igualmente democrático a que fazem jus tais representantes comparativamente mais representativos de nossa sociedade.

quinta-feira, 11 de junho de 2015

Para meus alunos IV

Pequena aula sobre voto facultativo de meu querido amigo e colega Bruno Reis (UFMG):





Para meus alunos III

Quem quiser saber mais sobre Afonso Arinos de Melo Franco, cujo Parecer de 1949, em defesa do presidencialismo brasileiro, discutimos em sala de aula, no curso sobre "Pensamento Político Brasileiro I", eis aqui uma breve biografia política, do site do Cpdoc/FGV, e o link da Editora FGV para o meu livro sobre o autor, publicado em 2005, sob o título A Política Domesticada: Afonso Arinos e o colapso da democracia em 1964.

A política domesticada: Afonso Arinos e o colapso da democracia em 1964

Para meus alunos II

Segue link para página do IMDb com muitas informações sobre o filme Cromwell, o Homem de Ferro (1970), de Ken Hughes, que assistimos como parte das atividades do curso "Revolta & Revolução I: Revoluções Inglesas do Séc. XVII": http://www.imdb.com/title/tt0065593/.
Já uma seleção de trechos mais interessantes está disponível aqui no Youtube:
https://www.youtube.com/watch?v=fjuHqNmPZSI

Cromwell, O Homem de Ferro (1970) Poster

terça-feira, 26 de maio de 2015

Comunicação e política nas eleições de 2014 (Vídeos do VI Encontro da Compolítica)

Vídeos do VI Encontro da Associação Brasileira de Pesquisadores em Comunicação e Política - Compolítica, realizado na PUC-Rio em abril, disponíveis graças ao belo trabalho do Departamento de Comunicação da PUC e do querido Arthur Ituassu:

http://puc-riodigital.com.puc-rio.br/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=25899&sid=145#.VWS8JtJVikp


quinta-feira, 21 de maio de 2015

Para meus alunos

Segue abaixo link para matéria super didática publicada no jornal The Washington Post sobre gerrymandering, ou seja: a arte casuística de desenhar distritos eleitorais de modo a garantir que determinado partido ou candidato sempre leve a melhor e conquiste a cadeira, ou cadeiras em disputa naquela circunscrição. Arte, aliás, muito aperfeiçoada nos EUA, por força da longa tradição do sistema eleitoral distrital naquele país:

terça-feira, 19 de maio de 2015

A caixa de Pandora

Há pouco mais de doze anos dizia-se que a nova democracia brasileira havia passado por seu principal teste com a eleição tranquila e a posse festiva de Luís Inácio Lula da Silva, apoiado por um verdadeiro e moderno partido político de massas, tal como fora preconizado durante anos por tantos especialistas e críticos da História política e partidária nacional. Tudo levava a crer que, finalmente, a prática do regime se aproximava dos modelos mais aceitos e que pelo menos no que dizia respeito a dois quesitos fundamentais – consistência representativa partidária e alternância pacífica, porém efetiva de poder; com a investidura, inclusive, de uma forte liderança de esquerda – já podíamos deixar de lado ao menos alguns dos muitos complexos de inferioridade que provavelmente desde a origem marcaram a nossa experiência política como Nação.
Vieram então os governos petistas e outros resultados – talvez surpreendentes – foram obtidos: a estabilidade econômica foi mantida, o crescimento retomado, e a desigualdade social secular fortemente combatida. E tal como já ocorrera com alguns de seus antecessores, o PT, ou alguns de seus líderes e simpatizantes, também acreditaram que seu sucesso e sua hegemonia pudessem durar indefinidamente, ou por décadas.
Mas eis que surgiram então novas crises políticas e econômicas e mesmo vencendo a quarta eleição presidencial consecutiva, o partido e seu governo se veem hoje em luta para fazer valer as prerrogativas conquistadas através do voto, e talvez até enfrentando ameaças de sobrevivência a curto e médio prazo. De modos que as velhas deficiências atribuídas ao nosso sistema, e que talvez já contássemos como superadas – como as tais inconsistências partidárias e as dificuldades de institucionalização da alternância de poder –, parecem voltar a exibir os mesmos traços que, outrora, teriam contribuído para tantas outras crises e mesmo rupturas.
Diante de tal quadro, a boa consciência política nacional, como de hábito, agarra-se à esperança de uma reforma política que possa – talvez mediante algum automatismo – solucionar a crise, recolocar o país na rota de expectativas positivas, ou finalmente fazer da resolução de velhíssimas queixas e promessas uma realidade segura e inexpugnável.
Não pretendo abordar o tema da reforma diretamente, por enquanto (como já disse e esbocei antes aqui, em posts passados, abordar esse assunto a sério demanda muito mais espaço e tempo de discussão).
Somente gostaria de sugerir duas ideias básicas acerca da crise atual:
1) Certamente a vitória de Lula e do PT em 2002 foi significativa e demonstrou a força e a vitalidade do sistema político democrático brasileiro pós-1988; mesmo que depois disso o partido possa ter perdido o rumo, e ainda que modelitos políticos e ideológicos autoritários, que inocentemente julgávamos ultrapassados e fora de moda, tenham resolvido sair dos armários e encher as passarelas públicas com seu inconfundível cheiro de naftalina (ou aromas ainda menos estimulantes). Seja como for, é importante reconhecer não apenas a matéria fluida e volúvel de que são feitos o equilíbrio político democrático e a aparente consistência da experiência social cotidiana, e que, portanto, a chamada evolução institucional se assemelha, na prática, menos a um crescimento vegetativo, supostamente vigoroso – como se a democracia se “consolidasse”, à maneira de uma árvore frondosa –, do que a uma habituação e acomodação de forças mais ou menos precárias e instáveis. Mas também de que faz parte das contradições, da incerteza e da insegurança intrínsecas à nossa condição social e política o fenômeno de se poder assistir, no intervalo de uma mesma geração – ou ainda em períodos mais curtos e dramáticos –, à celebração inequívoca da mobilidade social e da permeabilidade política e institucional – com a ascensão eleitoral de uma liderança incontestavelmente popular, por qualquer ângulo que se observe – sucedida, contudo, pela reafirmação altissonante do que existe de mais brasileiramente reacionário, preconceituoso e antidemocrático. Quer dizer: fazem parte da mesma e dinâmica realidade democrática nacional, de um lado a incorporação e a elegibilidade popular que conduziram pelas vias institucionais ao poder, em sequencia, um sociólogo, um ex-torneiro mecânico e líder sindical, e, por fim, uma ex-guerrilheira, e, de outro, a demonização de todos ou alguns destes – mas acima de tudo, das instituições democráticas que os consagraram – em nome de uma pretensa e hipócrita moralização da vida política, da prédica de romantismos ideológicos inconsequentes ou, mais prosaicamente, na defesa de privilégios cada vez mais incompatíveis com um status quo social e econômico minimamente igualitário, competitivo e instável.
2) E que, portanto, o que assistimos hoje – especialmente em matéria de visibilidade da corrupção e de certa incompetência endêmicas não só do nosso Poder Público, mas também na esfera da nossa iniciativa privada – é o desdobramento natural da verdadeira revolução que o funcionamento corriqueiro das instituições democráticas é capaz de produzir, em especial numa sociedade tão pouco habituada a elementos e a dinâmicas comezinhas de qualquer regime político efetivamente mais liberal e socialmente mais justo.
Não se pode dizer, pois, com certeza, se efetivamente há hoje mais ou menos corrupção do que em outros momentos do passado, seja em termos de montantes envolvidos – e já descontadas a inflação e as variações cambiais – ou da quantidade e importância hierárquica dos corruptos e corruptores envolvidos. Faltam-nos dados. A rigor, porém, descontados os evidentes interesses históricos, ou – ainda mais frequentes – partidários, em se mensurar tais magnitudes, tratam-se todas de números irrelevantes. Basta só um caso de corrupção, e em qualquer escala de valor, para atestar não só o desvio, mas também o interesse coletivo institucional e ético em se coibir o mesmo.
O que não podemos duvidar é que nunca a visibilidade a respeito da mesma corrupção parece ter sido maior. Para tal consequência convergem fatores históricos e institucionais atuais como a alta competitividade do sistema político, a plena liberdade de expressão e a revolução comunicacional em curso, a autonomia relativa de (novos) órgãos controladores e a pressão – ou demanda – mais ou menos popular por transparência (ou, talvez pela exibição ininterrupta de novos capítulos da velha novela patrimonialista, sempre com os mesmos e favoritos vilões e bodes expiatórios).
Ou seja: há muito foi aberta a caixa de Pandora da investigação e apuração dos “malfeitos”, assim como da exploração denuncista, com a exposição contínua das entranhas da conhecidíssima privatização do Público neste país. E se depender da atual democracia brasileira, em seu pleno vigor, podemos ter certeza: ela ainda vai nos revelar muito daquilo que sempre soubemos que acontecia, mas talvez não pudéssemos – ou alguns de nós quiséssemos – ver em detalhe. E não vai ser fácil separar o joio do trigo, ou deixar de confundir alhos com bugalhos, e assim proteger adequadamente as liberdades civis democráticas diante das fúrias pretensamente justiceiras, sejam estas jacobinas ou da Reação, ambas igualmente inerentes ao regime.
Parafraseando então um escritor célebre, diria: não pergunte quem abriu, ou por quem se abriu essa caixa de Pandora.
Pergunte antes: quem mais gostaria ou teria interesse em fechá-la?

sábado, 21 de março de 2015

Fins e meios (ou, Sobre panelas e canja de galinha)

Não vou entrar no mérito das razões – algumas delas, de fato, possivelmente boas – para a mobilização popular de oposição ao Governo Dilma, ocorrida domingo passado em várias capitais. De qualquer modo, antes de ir ao ponto que realmente me interessa, acho importante que todos os setores favoráveis à presidente e/ou ao seu partido levem a sério, mesmo que obviamente discordando, tanto a magnitude da participação quanto o que pode restar de conteúdo substantivo na agenda dos protestos (ao menos em temas como os do combate à corrupção, ou dos problemas do contexto econômico, entre outros). Não obviamente para vestir alguma carapuça indevida. Mas sim para não perder o foco na agenda mais ampla de potenciais interesses populares com alguma dose de realidade, e que podem, também, alimentar ou moderar a energia das ruas (matéria em que certamente o desempenho governamental poderia ser corrigido, incrementado, aperfeiçoado ou melhor divulgado).
Vou me ater somente a uma tentativa de interpretação da viabilidade dos objetivos políticos possíveis da manifestação, sintetizados no mote principal: “Fora Dilma!” (para além dos elementos claramente irracionais e carentes de objetividade que este tipo de mobilização inevitavelmente também sempre incorpora). Ou seja: da concretização da meta alardeada de modo mais conspícuo pelos manifestantes e que se resume ao desejo de afastar do poder a presidente recém-reeleita. 
Também não pretendo perscrutar aqui quais os resultados últimos concretos que se espera obter com tal intervenção radical em nosso status quo. Sejam eles de natureza política e partidária mais ou menos imediata – como a transferência das prerrogativas presidenciais de acordo com a linha sucessória constitucional e seus possíveis desdobramentos, de curto, médio ou longo prazos – ou os de caráter supostamente mais substantivo, quer dizer, os que implicariam alguma alteração efetiva no cotidiano dos brasileiros por força de tal mudança drástica de poder.
Deixo de bom grado essa tarefa aos seus proponentes e entusiastas.
Gostaria apenas de enfatizar que, como todos nós sabemos, tal operação só pode ser efetivada de três modos: 1) ou a presidente renuncia (como Jânio Quadros, em 1961); 2) ou é impedida de governar por meios constitucionais, ou seja: por um processo completo de impeachment (tal como aconteceu com Fernando Collor, em 1992); 3) ou seu governo é interrompido pela força: como antes dela foram os de Deodoro (em 1891), Washington Luís (em 1930), Getulio Vargas (em 1945 e em 1954), Café Filho e Carlos Luz (impedidos, manu militari, em 1955), e João Goulart (em 1964), (e vamos parar por aqui porque já não sei se estou esquecendo alguém).
Não creio que precise lembrar que somente as duas primeiras formas são contempladas pela Constituição em vigor. E ambas apresentam alguns inconvenientes óbvios para os interessados. A primeira por ser bastante improvável, e a segunda por necessitar de uma série de requisitos e trâmites legais, formais, processuais e, finalmente, políticos, que além de não serem simples, demandam certo tempo e pré-condições. Para se ter uma ideia de quão excepcional é, na nossa História Republicana, a aplicação regular do instituto do impeachment – tal como procurei sugerir em artigo publicado recentemente em O Globo (“A exceção, não a regra”, 12/03/2015, http://oglobo.globo.com/brasil/artigo-excecao-nao-regra-pelas-tabelas-15570986 ) –, basta lembrar que embora tentado algumas vezes contra presidentes da República Velha (1889-1930), e ainda menos no período democrático de 1945-1964 – não por acaso, contra Vargas, em 1954, e contra Jango, dez fatídicos anos depois –, seus proponentes nunca lograram êxito imediato (pela via constitucional). Dado que, como disse, Carlos Luz e Café Filho foram impedidos em 1955 no contexto excepcional da chamada crise do 11 de novembro daquele ano, o impeachment de Collor, há pouco mais de duas décadas – de acordo com a Constituição e sem envolvimento militar –, é realmente a exceção à regra. 
Mas talvez seja justamente a relativa proximidade temporal entre nós e aquela conjuntura – somada talvez a certo desconhecimento de nossa História anterior – o que pode estar levando muita gente a achar que tal processo seja algo simples e sem maiores riscos. Riscos que, aliás, podem ser maiores ou menores tanto em caso de sucesso quanto de fracasso de uma eventual tentativa a esse respeito, por parte do Congresso Nacional (que, como sabemos, é quem tem a prerrogativa de julgar e decidir nesses casos).
Seja como for, e ainda mais quando se houve lideranças oposicionistas falar em “sangrar” a presidente, pode ser que o apoio ao dito “Fora Dilma!” se trate justamente de uma tentativa não somente de pressão pela viabilização legal e política de um processo de impeachment, como também, alternativamente, de indução a um desgaste e uma desestabilização do governo de modos a que em curto ou médio prazo não venha a caber à presidente outro recurso que não a renúncia. 
Esta estratégia, porém, além de ser uma franca e temerária aposta no famoso “quanto pior, melhor” (da qual depende), também não seria propriamente inédita (e não custa lembrar que na única vez que tal expediente parecia atingir seu objetivo, o tiro – e foi mesmo um tiro célebre – saiu, por assim dizer, pela culatra).
Cabe, portanto, aos incentivadores do movimento ora em curso, especialmente aqueles interessados e/ou comprometidos com a manutenção das atuais instituições democráticas, refletir um pouco sobre seus fins e meios. 
Afinal, nada garante que o movimento atual de indignação, desconfiança e deslegitimação, se efetivamente encorpado e consequente, vá necessariamente se resumir a consumir as vítimas sacrificiais da hora, ou conter-se às imediações do Palácio do Planalto. Movimentos políticos arrebatados e plenos de ânimo, que se arriscam nos limites da norma – mais ou menos assim como avassaladoras aventuras extraconjugais – podem começar de formas bem conhecidas. Gerando até grandes expectativas. Mas seu desfecho é sempre imprevisível.
Quanto à terceira e mais tradicional forma de afastamento de presidentes no Brasil republicano, bem...
(Vou até a cozinha usar minhas panelas para preparar uma boa canja de galinha, como manda o dito popular)

segunda-feira, 9 de março de 2015

Back to the Musical Box

Não. Não assisti ao discurso de Dilma, nem às reações mais ruidosas ao mesmo.
Tinha coisa muito melhor para fazer então: deliciar-me com o único e imperdível show de Steve Hackett no Rio.
Para quem não sabe, ou não se lembra, Hackett era a guitarra solo do Genesis na fase áurea do grupo inglês, um quinto de uma das mais felizes e criativas reuniões do prolífico estilo conhecido nos anos 1970 como rock clássico, progressivo ou sinfônico. Quem teve o privilégio de assistir e ouvir o show que deu ontem com sua nova e afiadíssima banda, com uma seleção primorosa de grandes criações do passado, pode entender porque aquele tipo de música tinha tal alcunha. Com uma parafernália de grandes ideias musicais e arranjos altamente sofisticados, mas perfeitamente fluentes e arrebatadores, o revival do Genesis me deu grande prazer, algumas certezas e uma profunda tristeza.
A primeira é que Hackett é mesmo um músico de primeira, que sabe usar sua técnica refinada em benefício da forma e não do efeito. Não sei bem até hoje porque saiu da banda, depois de participar da gravação de discos antológicos como Nursery crime, Foxtrot, Selling England by the pound, e The lamb lies down on Broadway, entre outros, mas das duas uma: ou não havia mesmo lugar para ele na guinada pop que a banda daria em seguida à sua saída, ou em função desta a própria banda teve reduzida sua capacidade, digamos, sinfônica.
Mas não importa. Porque em segundo lugar, o atual show de Hackett e seus ótimos acompanhantes é um belo tributo ao talento dos outros quatro parceiros originais. A música que ele fez nos 70 com Mike Rutherford, Phil Collins, Peter Gabriel e Tony Banks é simplesmente mágica.
Por isso mesmo que embora todos no time atual deem conta do recado, num show praticamente perfeito, não posso deixar de mencionar o quanto senti saudades ontem do velho Peter Gabriel. O vocalista atual de Hackett, Nad Sylvan, bem que se esforça e faz a sua parte. Mas para não ser engolido por músicos tão virtuosos o cantor de uma banda como o Genesis tem sempre de ter um carisma fora do comum. E eu não tenho outra definição para Gabriel.
Enfim, diante de tanto prazer musical, restam apenas algumas tristes constatações.
Uma: impressionante a quantidade de chatos que aparecem em shows e espetáculos hoje em dia! Gente incapaz de calar a boca e deixar os vizinhos em paz (mas também que ideia antiquada! Onde já se viu: querer prestar atenção na música num show de... Música!).
Mas aí está a principal fonte de desânimo: será que ainda se tem a simples noção - principalmente a rapaziada mais jovem - de que se pode elevar a música (ou qualquer forma de arte) a tal ponto de tornar a sua simples fruição uma experiência realmente importante? Não somente inesquecível, mas também transformadora das próprias percepções e concepções?
Sei que vou soar velho e elitista - e que certamente vai aparecer alguém ainda mais chato do que eu para ridicularizar meu gosto e meus objetos de prazer estético. Sem falar dos cínicos que vão reduzir tudo à dimensão mais rastaquera das imposições do show business e da onda de revivals que impera. Tudo bem
Mas não seria trágico se de repente – ou pior: paulatinamente – certas experiências privilegiadas de fruição estética e formação do gosto simplesmente desaparecessem?
Por isso mesmo agradeço a Steve Hackett e a todas as circunstâncias que o levaram a me dar essa oportunidade única de lembrar como a música que ajudou a me formar na juventude – e toda arte feita com paixão, esforço e talento – pode ser tão rica e imprescindível.