segunda-feira, 2 de outubro de 2017

Historinhas II (ou, brincando – de mau gosto – com os números)

Segue em pleno vigor o festival de desfaçatez que assola o país.
Se na semana passada fomos brindados com tentativas ridículas de tapar o sol com a peneira – questionando-se os índices de desaprovação do Exmo. Presidente da República (“já que vai tudo tão bem! Como é possível alguém desaprovar o "governo"?!”) – logo em plena segunda-feira a Folha de S.Paulo destaca em sua edição que "Maioria do país quer Lula preso e Temer processado".
Embora não possa surpreender ninguém o destaque negativo dado ao noticiário sobre o ex-presidente (e agora também ao atual), dessa vez, porém, fiquei encafifado com a manchete. Afinal, não foi o próprio DataFolha, do mesmo grupo empresarial, que tornou pública, também na semana passada, nova pesquisa de intenção de voto na eleição presidencial prevista para o ano que vem, apontando Lula como favorito em todos os cenários previsíveis? Como é possível que a maioria do eleitorado demonstre, simultaneamente, intenção de eleger presidente e de ver preso o mesmo personagem?
Não, querido leitor. Não culpe o eleitorado (como é habitual no Brasil).
Nem culpe os números (e no caso, o DataFolha).
A confusão – intencional ou não – é de responsabilidade única e exclusiva do jornal.
Pois basta olhar não a manchete, mas sim os números no texto da própria matéria para perceber que, sim, é possível – ao menos no Brasil de hoje – que uma parcela considerável do eleitorado se disponha a reeleger Lula, enquanto que outra, também significativa, queira vê-lo atrás das grades (http://www1.folha.uol.com.br/poder/2017/10/1923447-brasileiro-quer-lula-preso-e-aval-a-denuncia-contra-temer.shtml?utm_source=newsletter&utm_medium=email&utm_campaign=newsfolha).
Deixando de lado a problemática hipótese – improvável, mas não de todo impossível – de que possa haver alguma interseção entre os dois contingentes, o problema conceitual mais evidente se encontra na própria noção de "maioria". Afinal, de que maioria se está falando? Maioria simples, absoluta, qualificada, ou quase unânime? Sem dúvida que o uso do termo – maioria – já é em si relevante. Mas as palavras enganam (manchetes de jornal, então...). Por isso é preciso prestar um pouco mais de atenção (inclusive porque já na abertura do texto linkado acima o autor da matéria não tem nenhum escrúpulo em transformar a tal "maioria" de entrevistados numa entidade um pouco maior, quase mítica e universal: "o brasileiro", que, segue a missiva, "defende a prisão" de um, assim como "o prosseguimento da denúncia" do outro).
Pois não pode haver nenhuma dúvida com relação à malandragem da edição jornalística quando se comparam, no próprio texto da matéria, as diferentes "maiorias": a pró-prisão de Lula (cerca de 54%) com a dos que querem ver Temer devidamente investigado: 89%! Ou seja: o que a manchete "iguala" é francamente problematizado pelo próprio texto. A não ser, é claro, que se julgue que "maiorias" de 54 ou de 89% não fazem a menor diferença! Ou que os 40% minoritários que se manifestam na mesma pesquisa contra a prisão de Lula possam ser facilmente comparados e equalizados aos 7% contrários a um eventual aval da Câmara para processar Temer. Há portanto uma "pequena" diferença entre o "brasileiro" que já condenou Lula e o que quer ver Temer sendo processado, e uma diferença de magnitude um "pouquinho" maior entre os que não concordam com os diferentes ordálios que espíritos mais severos – talvez os eméritos juízes da Folha de S. Paulo e companhia midiática ilimitada – gostariam de ver aplicados a cada um dos personagens em questão, em sua desinteressada ânsia por justiça a qualquer custo,.
Deixando de lado a, digamos, infelicidade da edição da notícia, fica, porém, mais claro porque ambos os resultados com relação a Lula podem ser estatisticamente válidos: a maioria que hoje – ou semana passada – o elegeria, não é obviamente a mesma que o mandaria hoje para a cadeia. Está última parece se referir mais à dos que rejeitam terminantemente o líder petista, conforme a pesquisa de intenção divulgada na semana anterior.
Nesse sentido, se corretas as duas pesquisas de opinião – e nossa hipótese de leitura das mesmas – o que efetivamente as enquetes apontam, entre outras coisas, é para a profunda polarização nacional. Em especial no que diz respeito a Lula e ao PT.
Nada de muito novo, portanto. Bastaria, aliás, observar na matéria os dados desmembrados da pesquisa, principalmente no que diz respeito à renda e localização dos entrevistados para imaginar com boa margem de segurança quem são os típicos componentes de cada "maioria" ou "minoria" (assim como perceber a ideia um tanto quanto exclusiva – e excludente – de "brasileiro" que os jornalistas da Folha – e algures – provavelmente cultivam hoje em dia...).
Quanto à Temer... bem (sugiro humildemente a leitura do meu penúltimo post neste blog, justamente sobre a evolução de sua "popularidade", e cujo título é "Historinhas (brincando - mas não brigando - com os números").

domingo, 1 de outubro de 2017

Historinha (ou brincando - mas não brigando - com os números)

Análise de pesquisas de opinião é sempre um negócio arriscado. Ainda mais quando você não tem acesso a muitos dados, não pode desmembrar os índices agregados, nem pode sair a campo para testar hipóteses ou mesmo meras possibilidades de hipóteses.
Mas olhando a evolução dos números sobre avaliação do "governo"Temer, ao longo desse seu  tenebroso primeiro ano, não deixa de ser sugestivo o modo como eles parecem delinear uma tendência constante e ininterrupta de aumento da desaprovação.
À princípio, não poderia surpreender a ninguém em seu juízo perfeito que a dita "administração" atual tenha conseguido bater os recordes de avaliação negativa que até hoje eram galhardamente sustentados pelo há muito finado Governo Sarney (1985-1990), em seus deprimentes estertores (mais exatamente no ano de 1989, não por acaso o da eleição do ex-caçador de marajás, Fernando Collor de Mello – candidato, então, ao papel recorrente de salvador da pátria amada, salve, salve!). Com efeito, não pode ser minimizado o fato de que desde pouco meses após usurpada a presidência da República por Temer e chegando até a última pesquisa encomendada ao Ibope pela CNI ( https://g1.globo.com/politica/noticia/governo-temer-e-aprovado-por-3-e-reprovado-por-77-diz-ibope.ghtml ), os inicialmente razoáveis índices de  aprovação e confiança no "governo" seguiram sistematicamente despencando, aferição após aferição.
Mas como então interpretar tal fato levando-se em conta, porém, que não foram poucos os apoiadores da chegada dessa coalizão ao Poder – como ainda hoje existem muitos que, de um modo ou de outro a sustentam ou justificam (em geral, com argumentos tão convincentes e inspiradores quanto uma poesia de sua Excelência presidencial) –, assim como segue intacta e cada vez mais autônoma a agenda de mudanças que unificou o poderoso movimento golpista (a despeito de rusgas e rivalidades que acometem seus partidários, além, é claro, das diferentes apostas que vão fazendo em torno das eleições de 2018 – incluída aí, também, obviamente, a possibilidade de se impedir as próprias eleições, promovendo-se então outro golpe dentro do golpe)?
Uma historinha que pode dar conta dessas contradições é simples (mas espero que não faça nenhum boi dormir): a talvez não tão impressionante e constante deterioração da popularidade do "governo" Temer parece espelhar fielmente a reação e o desapontamento de relativa maioria do eleitorado brasileiro diante da promessa fajuta – alimentada ad nauseam pelos golpistas, suas claques midiáticas, et caterva de intelectualóides disponíveis - de que uma vez extirpada a praga petista do Poder, e sobrevindo a isso uma nova coalizão partidária devidamente sólida em torno do novo capataz e seu competentíssimo e abnegado projeto de salvação nacional, todos os problemas econômicos do País se resolveriam automaticamente, e, por último, mas não menos importante, toda a desenfreada e desnuda corrupção seria castigada e suprimida (porque, afinal, qualquer criança brasileira "bem informada" sabe que a malversação de recursos públicos em Pindorama é não somente uma invenção do PT, como exclusividade de seus governos!).
Assim, bastou por um lado que o bolso da maioria dos cidadãos não apresentasse os devidos e esperados sinais de redenção. E nem mesmo as alvissareiras novas de redução da inflação e de queda dos juros parecem ter surtido, por enquanto, grandes impactos (já que vá lá explicar a um desses bem alimentados dândis televisivos da economia engravatada que para o comum dos mortais sem crédito e acesso ao sistema financeiro a redução da taxa de juros não chega a entusiasmar, ou que a redução da inflação pode não fazer tanta diferença assim, dependendo dos itens que compõem a média ou do patamar inicial dos preços que, eventualmente, param de subir ou mesmo descem; ainda mais, é óbvio, se você não tem nem salário digno nem rede de proteção social que lhe permitam consumir...).
Quanto ao fim da corrupção... bem. Alguém já disse, e outros repetiram, ao longo dos últimos quinhentos anos - ou seriam mil, dois mil? - que neste assunto o dito cujo fica um pouco mais embaixo.
Que o digam sua Excelência, sua qualificadíssima entourage, suas bases pra-lamentares, e os implacáveis defensores da moral pública e palmatórias da humanidade, na mídia, no Ministério Público, no Poder Judiciário. Graças à ação patriótica e perfeitamente harmônica de todos, o cidadão brasileiro cada dia sabe melhor o quão pode dormir descansado com relação a seus direitos fundamentais e ao destino seguro e eficaz do imposto que com tanto suor e alegria destinou aos encargos da "gerência".
Junte-se afinal, a tal enredo edificante que nos vem sendo legado há coisa de um ano pelos novos líderes da República, o conjunto portentoso de medidas e reformas que eles vêm promovendo com tanta presteza e espírito público, para o bem de todos e felicidade geral, e ainda caberia, mais uma vez, perguntar: é possível ter alguma dúvida dos porquês de tais índices de aprovação e confiança?