quarta-feira, 31 de janeiro de 2018

O candidato dos sonhos (ou, mais um capítulo da mal-afamada série, "an establishment in search of an outsider")



"Anything goes..."
(Cole Porter)

A enrascada em que os apoiadores do golpe de 2016, em especial os moderados, se meteram pode ser compreendida melhor, à medida que avançam as especulações sobre candidaturas à presidência da República para o pleito deste ano, em torno do seguinte problema: o candidato dos sonhos das oligarquias tem de ser alguém totalmente palatável ao chamado establishment, e, ao mesmo tempo, um outsider da política.
Ou seja: alguém que possa tranqüilizar as oligarquias e seus vassalos nos setores mais conservadores e reacionários das classes médias e inferiores, mas que pareça não estar contaminado pelo jogo político institucional – exatamente a arena onde hoje as oligarquias exercitam sem peias (que não a própria competição interna a elas) o seu poder predatório.
Daí o nervosismo à cada nova pesquisa de intenção de voto – com ou sem Lula, com essa ou aquela plêiade de concorrentes –, e o assanhamento e a angústia em torno de nomes "novos", como os de "celebridades", ou recém-entronizados paladinos da justiça, ou ainda tecnocratas supostamente acima de qualquer suspeita (partidária, é claro).
Tanto faz.
O que importa é achar logo algum "poste" que se coloque competitivamente – e principalmente graças à sua inconsistência política e partidária – num ponto central mais ou menos eqüidistante das extremas (ou nem tão extremas assim), à esquerda e à direita. Que, como já dissemos antes, tendem se não a propriamente seduzir "ideologicamente" as maiores parcelas do eleitorado, e, talvez, a liderar as futuras pesquisas de intenção de voto, certamente deverão seguir polarizando o debate, tornando ainda mais inconsistente qualquer tentativa de articulação de um discurso de "centro" – num contexto geral já inteiramente radicalizado (e sem nenhuma perspectiva séria de descompressão a curto ou médio prazo). E com tudo tendendo a fazer do próximo pleito o mais incerto e imprevisível desde 1989.
O dilema traduz, em primeiro lugar, a versão tupiniquim da tendência política e ideológica global que, em outros contextos já foi chamada (creio que impropriamente) de "populismo plutocrático": conversa fiada moralista e pseudo-econômica para engrupir e mobilizar levas de neófitos, ressentidos e preconceituosos, mas igualmente perfeita para alavancar policies e "reformas" talhadas de encomenda para rentistas e outros espertalhões (às custas dos mesmos ressentidos e preconceituosos, inclusive).
Aqui em Pindorama acredito que a melhor definição seja outra: antipoliticismo udenista primário. Quer dizer, indignação seletiva, obsessiva e praticamente exclusiva com corrupção no (e do) setor público, desprezo ignorante da política, dos partidos e dos políticos profissionais – mas acima de tudo do povo que os elege –, crença messiânica na pura vontade e anseio infanto-juvenil por salvadores da pátria dotados do inefável pedigree moral e técnico-elitista para resolver autoritária e cientificamente os problemas nacionais. Em suma: uma receita infalível para escolhas equivocadas e insatisfação garantida (e sem o seu dinheiro de volta!).
Mas não nos iludamos. Para além da arenga moralista, autoritária, eventualmente pseudo-liberal e moderninha que anseia pelo candidato puro-sangue se esconde a mesma fonte e beneficiário final: as poderosas minorias que, aqui ou alhures, tem interesse na manutenção indefinida do status quo social, ou pior: anseiam por retrocessos lucrativos e imediatos.
Por outro lado, o traumático passado recente, o elevadíssimo grau de imprevisibilidade institucional produzido a doses maciças de oportunismo político míope, em meio a anarquia judicialesca fatal – cujos capítulos mais recentes tivemos o desprazer de testemunhar no último 24 de janeiro, mas que vem se desenrolando entre nós, ininterruptamente, há muitos anos – inevitavelmente cobram o seu preço, atingindo, de um modo de outro, a credibilidade de todas as instituições. Cumprindo-se enfim a profecia construída por décadas de moralismo e denuncismo midiático irresponsável: a longa noite em que todos os gatos – leia-se, as instituições, os partidos e agentes políticos – se tornam pardos, e não reste mais nada à turba desencantada e desencontrada do que ansiar pelo milagre e seu correspondente messias.
Mas calma... Nem tudo está perdido (nos dirão sofregamente os arautos e especuladores do "et plus ça change...", do alto de seus think tanks, em seus editoriais ou artigos de opinião acolhidos nas velhas tribunas da "ordem" e do "progresso"...).
Afinal, se não houver outro jeito, sempre se pode contar, menos entusiasmadamente, com os quadros mais confiáveis da velha política oligárquica. Como, é claro, em primeiríssimo lugar, os tucanos: sempre tão modernos, elegantes e impolutos – mesmo quando flagrados em evidente desconforto digestivo no corpo-a-corpo das campanhas, ou envoltos em enredos nebulosos, de fatais bolinhas de papel, surrupio de merenda escolar, ou concorrências públicas marotas, a helicópteros que desaparecem na calada da noite (ou melhor dizendo: surgindo esporadicamente e submergindo rapidamente nos labirintos da cobertura jornalística imparcial que pontifica em nosso país).
Ou ainda melhor (ou pior): quem sabe até o governo temerário não pode ele mesmo parir o seu próprio poste de confiança?
Afinal, chegamos a tal ponto de desfaçatez e vale-tudo que até algum campeão nacional de impopularidade tem o direito de sonhar: por que não eu?

(pobre do Cole Porter... sua canção original era tão inocente...)

segunda-feira, 22 de janeiro de 2018

Lula, o Brasil e o espelho

Durante muito tempo, mais precisamente até 2002, acreditei que Luís Inácio Lula da Silva nunca seria eleito presidente do Brasil. Com base nas três disputas presidenciais que ele havia perdido até então, minha teoria era bastante simples: Lula jamais seria eleito porque ele era bom demais para isso. Demais para que uma boa parte do Brasil pudesse suportar.
Ou seja: Lula representa (e sempre representará) um exemplo de sucesso.
Um cara que veio de uma das regiões mais pobres do país, superou todo o tipo de dificuldade, mal teve oportunidade de estudar, mas aprendeu uma profissão e construiu com esforço uma carreira, tornou-se líder sindical de uma categoria profissional organizada e numerosa, em setor crítico da indústria nacional, enfrentou pacifica e pragmaticamente uma ditadura em defesa dos direitos e interesses dos seus companheiros trabalhadores, e, por último, mas não menos importante, fundou e liderou o maior partido de massas da história política brasileira. Em suma: o homem já tinha um portfólio invejável quando se tornou nacionalmente conhecido como o principal desafiador dos poderosos candidatos do establishment nas três primeiras eleições presidenciais pós-ditadura.
Ora: quem nesse país possui trajetória comparável? Quantos se alçaram comparativamente mais alto, ou foram mais longe, pelo próprio mérito e esforço (como gostam de repetir os hipercorretos importadores de pseudovalores estrangeiros e bajuladores de "celebridades")?
Quem pode se mirar nessa história – nesse exemplo, ou espelho – e não se admirar (ou se incomodar)?
Num país marcado até a medula pela escravidão, tão cruel e mesquinho com a massa de despossuídos e desprivilegiados, e ao mesmo tempo tão pusilânime e condescendente com privilégios dos bem-nascidos, dos apaniguados, apadrinhados, filhinhos-de-papai, etc., quem consegue, de fato, se comparar? Sejamos francos: perto de uma trajetória vitoriosa como a de Lula, somos tantos de nós, na melhor das hipóteses, uma legião de amadores em matéria de capacidade de autorrealização pessoal, ou promoção da própria mobilidade social ascensional.
Mas eis então que esse arrogante imigrante nordestino, sem formação superior, cometia a suprema ousadia de querer nos governar?! E o que é pior: prometendo trabalhar no governo justamente para combater a miséria e promover a inclusão econômica e social de milhões como ele?!
Já não bastava ter de encarar o constrangimento de uma comparação com tais realizações pessoais? (ainda mais para algum filho das classes abastadas, ou médias – e que apesar de choramingar e invejar os ricos, mal se dá conta de estar no topo da pirâmide social desse país campeão mundial de desigualdade –, inclusive com todas as oportunidades de estudar em bons colégios e universidades?).
E ainda se tem de aturar o sujeito e seu partido no poder por mais de uma década!? Com essas políticas "populistas" de renda mínima, microcrédito, acesso à energia elétrica e habitação popular? Pior: bolsas universitárias, abertura de novas universidades públicas, cotas para minorias?!
E com o aplauso de tantos Chefes de Estado, analistas e interlocutores internacionais?!
Chega! É dose! Em que mundo estamos!? (Que se arranje logo um jeito de desqualificá-lo... talvez algum deslize típico de ascendente social, ou... melhor! Algum sinal, mesmo que torto ou fabricado, de ilicitude e desvio de conduta!! Perfeito!!)
Pois é.
A verdade, portanto, é que eu estava redondamente enganado.
Primeiro, porque Lula ganhou em 2002 (e, suprema impertinência, bisou em 2006 e, de quebra ainda fez a sucessora). Mas também porque é óbvio que minha simplista hipótese, ou melhor, intuição psicologética, era muito pobre e limitada para dar conta da compreensão adequada de uma eleição presidencial nos dias de hoje. E existem teorias muito mais interessantes e rentáveis para entender os resultados de 2002, ou de quaisquer outros pleitos.
Seja como for, passados todos esses anos, e tantas águas por baixo da ponte, e vendo agora o esforço ansioso e sistemático para impedir, novamente, que esse mesmo teimoso e impertinente brasileiro sequer tenha a chance de conquistar mais uma vitória – lembrando não só o que Lula fez na presidência, mas também como o fez (e sem menosprezar as óbvias razões maiores, de ordem programática e ideológica, que hoje se articulam contra seu possível retorno) –, ainda assim não resisto a perguntar: que imagem mais ou menos distorcida (ou talvez excessivamente fiel e implacável) é essa que certo Brasil enxerga quando se mira nesse espelho?

sábado, 13 de janeiro de 2018

Do grau de investimento aos graus de esquizofrenia (ou, de um rebaixamento a outro)

Seria cômico se não fosse trágico: de acordo com urgente cobertura jornalística da política nacional pelos nossos veneráveis veículos de "opinião", não apenas causa mal-estar junto aos nossos olímpicos gestores e à refinada platéia que os adula e inspira, a notícia do rebaixamento do grau de investimento do Brasil, por um desses oráculos inquestionáveis do mercado financeiro global, como também gera imediata troca de gentilezas entre ansiosos candidatos a campeões eleitorais do "governo" e de sua pauta "reformista" para as próximas eleições presidenciais. Afinal, segundo o novo consenso geral, foi por conta do adiamento da tal reforma da previdência que levamos o pito internacional. E aí sobra culpa e reclamação para todo lado da ínclita coalizão.
Como mudou este país!
Quem, em tempos idos, sequer consideraria a hipótese de se aventurar como candidato a presidente de um governo que ostenta recordes em matéria de baixos índices de popularidade, acossado por denúncias e incapaz sequer de nomear um ministro, ou ministra, sem causar arroubos de indignação jurídica e incômodo generalizado? E quem levaria a sério tal, ou tais candidaturas?
Afinal, nem bem são passados trinta anos desde que o mau desempenho de um governo (no caso, o de Sarney) simplesmente inviabilizou qualquer candidatura governista, inclusive do então maior partido do país, e de uma liderança como Ulysses Guimarães, ajudando a abrir caminho para a aventura collorida (é verdade também que, depois da tragédia da não-posse de Tancredo, os anos pesavam contra Ulysses; não foi à toa, aliás, que a maior parcela do eleitorado de então não só preteriu nomes tradicionais da política, como também preferiu, afinal, o candidato (supostamente outsider) mais enérgico e jovial de todos; deu no que deu...).
Sem querer fazer aqui qualquer maldade – comparando, por exemplo, a biografia e a estatura política de Ulysses com a dos ilustres candidatos a candidato do "governo" – fico, porém, me perguntando: o que leva a tamanho assanhamento eleitoral por parte de quadros tão umbilicalmente comprometidos com administração tão impopular, e em defesa de um ideário e de um programa rigorosamente antinacionais e antipopulares?
Descartando-se a hipótese possível, mas não provável, de que outros objetivos políticos que não exatamente a manutenção do controle sobre o Planalto guiem, na verdade, tais candidaturas, só resta uma (trágica) explicação:
O atual rebaixamento do Brasil foi precedido por outro, bem mais grave e difícil de recuperar.
De democracia emergente e objeto de estudo e admiração de observadores externos, graças ao golpe consumado em 2016 e ao conseqüente desmonte de tudo aquilo que, mal ou bem, representava o que havia de melhor em matéria de welfare state tupiniquim, fomos não somente subitamente rebaixados, no plano institucional, à condição de republiqueta de bananas, como social e economicamente retrocedemos ao nível de colônia de exploração neo-escravagista para negociatas ruinosas e especulação desenfreada.
Daí não só o servilismo com que se recebe e se reprocessa a notícia do grau de investimento em queda. Mas acima de tudo a atenção esquizofrênica dada às ansiedades e rusgas de candidatos cuja relevância política e partidária só encontra paralelo nas contribuições positivas que certamente deixarão como legado histórico de sua passagem pelos altos escalões dirigentes deste abençoado país.
Em suma: em matéria de rebaixamento, esse de agora é fichinha (e vistos na perspectiva histórica adequada, até os 7x1 ficaram baratos).