A única instituição que
poderia superar a atual crise política brasileira de modo minimamente razoável,
e com os comparativamente mais baixos custos econômicos, sociais e humanos, é
justamente aquela que menos tem chance de se apresentar. Talvez o crime mais
imperdoável da pandemia moralista, jurisdiscista, economicista e
fundamentalista que assola o país seja justamente o da demonização e
inviabilização dos partidos políticos dignos desse nome, ou de qualquer coisa
que se destine a cumprir a mesma finalidade.
E quando falo em partidos
autênticos de modo algum pretendo reiterar a infeliz tradição idealista
nacional que se habituou a lamentar não serem os partidos brasileiros tão fiéis
aos modelitos abstratos e hipercorretos que sempre zelou por importar e
cultivar. De jeito nenhum.
Ao contrário dessa
renitente sociologia das ausências – uma das versões acadêmicas do onipresente
complexo de vira-latas nacional – sustento que, sim, já tivemos grandes e
autênticos partidos neste país. E há até pouquíssimo tempo atrás, inclusive.
Sim. Para não recuar
demais no tempo, tanto o velho (P)MDB, quanto o PSDB de algumas décadas, e, é
claro, o PT de anteontem (assim como uma pequena miríade de outras siglas), são
exemplos de agremiações que já atuaram como partidos de verdade, capazes de
buscar e até conseguir a realização de importantes objetivos políticos, com
coerência programática, ação estratégica e considerável disciplina coletiva.
Goste-se ou não dos resultados assim obtidos.
É claro que os puristas e
chatos vão contra-argumentar citando fisiologismos, incoerências ideológicas,
mudanças de rotas e alianças discutíveis nas trajetórias concretas desses e de
outros exemplos do gênero. E sem dúvida, elas todas existiram, existem e
continuarão a existir. Como tudo o que dura e importa na vida real e não na
abstração dos modelos.
Mas nada disso impediu no
passado, nem necessariamente impediria no futuro, que grupos articulados de
indivíduos se unissem em torno de projetos comuns de poder e interferência
efetiva na realidade, no sentido de alterar o rumo dos acontecimentos – ou
preservar algo de valor que porventura estivesse sob ameaça – e assim produzir
resultados práticos para toda a sociedade. Está, aliás, uma velha e ainda
válida definição de partido político ou coisa parecida, creio (e desde que, é
claro, fossem preservadas e respeitadas as regras básicas de competição que deveriam
proteger a todos estes competidores).
Infelizmente, porém,
nossa situação atual é tão lastimável que partidos políticos eficientes são
tudo aquilo que, a rigor, não temos hoje, e que, a julgar pelo rumo dos acontecimentos,
e pelas altissonantes vã-guardas politicamente indigentes que empurram hoje o
país para uma longa noite sem rumo, tão cedo não teremos. Sem dúvida esse foi
mais um belo serviço que devemos todos agradecer não só à reciclagem
contemporânea das mais vetustas e hipócritas tradições antipartidárias
brasileiras, mas também, por que não, à nossa querida mídia e à legião de
intelectuais (!?) que nela pontificam diariamente, com sua autoridade técnica e
moral insuspeita e seu proverbial (senão mesmo conveniente) desconhecimento
basilar de teoria e história políticas. Pois que o mais evidente resultado da
histeria moralista não é, obviamente, a instauração da "ética na política",
mas, muito pelo contrário, o "salve-se quem puder", a captura de toda
a ação partidária pelas imposições e urgências das cumplicidades que envolvem
seus vários clãs, conventículos e máfias, e o escancaro das portas do Estado
para toda espécie de rent-seeker e predador
bem situado e privilegiadamente relacionado junto aos condôminos eventuais do
poder. Ou seja: nenhum espaço para programas de políticas públicas mais abrangentes
e dignas desse nome, e sim apenas um pregão de transações selvagens em torno do
melhor quinhão do butim ou da manipulação mais imediatista e inconsequente dos
marcos legais e (des)regulatórios. Com ou sem a embalagem grandiloquente e
suspeitíssima de “reformas”!
O PT, a mais importante
experiência de partido de massas em toda a diminuta história democrática
brasileira, encontra-se destroçado. Parte por seus próprios erros, mas também,
e muito mais, alvo da mais sistemática campanha de difamação e desconstrução
que talvez já se tenha assistido por aqui. O PSDB e outras siglas hoje no
poder, outrora também importantes, comprometeram tudo o que ainda restava do
seu capital numa aventura inconsequente e na adesão a uma agenda política e
institucional suicida. De modos que se vêm hoje inapelavelmente tragados pela
mesmíssima tempestade que ajudaram a invocar contra os odiados rivais. Alguns
de seus quadros e caciques podem ainda sonhar com alguma saída mais ou menos
incólume do turbilhão atual (só a Providência – ou os arcanos esotéricos da
Justiça e do Ministério Público – o sabem). Mas as legendas relegaram-se todas
à vala comum do oportunismo imediatista, reféns de suas próprias culpas,
cisões, receios, arapucas e disputas internas, e como tal se inviabilizaram
para qualquer ação consequente. E assim serão lembradas – ou em breve
devidamente esquecidas – pelos eleitores.
Quanto aos vários outros corrilhos
de oportunistas, com suas legendas intercambiáveis, esses podem seguir
usufruindo seus raros minutos de glória e vitórias mesquinhas, antes de serem
definitivamente reduzidos à ignomínia ou insignificância histórica que sempre
lhes foi e será destinada.
O mar definitivamente não
está pra peixe.
Nem muito menos, para a
ação consistente de grupos em defesa de interesses reais, certamente não
universalizáveis, mas ainda assim capazes de interação produtiva de ordens
sociais minimamente estáveis e previsíveis, e até marginalmente eficazes de um
ponto de vista (re)distributivo. Os velhos e desprezados partidos democráticos
de antanho.
É mesmo trágico. E receio
que muito tarde.
Pois de fato parece que
não resta muito antes que, afinal, a própria política e suas artes de
negociação e acomodação de diferenças – completamente absorvidas e desfiguradas
pelo vale-tudo atual – sejam definitivamente banidas em prol da demagogia mais
deslavada ou do autoritarismo puro, simples. E inevitavelmente incompetente.