sexta-feira, 24 de fevereiro de 2017

O paradoxo trágico da crise institucional brasileira (reflexões políticas inoportunas sob efeito de eflúvios momescos (ainda) tímidos)

A única instituição que poderia superar a atual crise política brasileira de modo minimamente razoável, e com os comparativamente mais baixos custos econômicos, sociais e humanos, é justamente aquela que menos tem chance de se apresentar. Talvez o crime mais imperdoável da pandemia moralista, jurisdiscista, economicista e fundamentalista que assola o país seja justamente o da demonização e inviabilização dos partidos políticos dignos desse nome, ou de qualquer coisa que se destine a cumprir a mesma finalidade.
E quando falo em partidos autênticos de modo algum pretendo reiterar a infeliz tradição idealista nacional que se habituou a lamentar não serem os partidos brasileiros tão fiéis aos modelitos abstratos e hipercorretos que sempre zelou por importar e cultivar. De jeito nenhum.
Ao contrário dessa renitente sociologia das ausências – uma das versões acadêmicas do onipresente complexo de vira-latas nacional – sustento que, sim, já tivemos grandes e autênticos partidos neste país. E há até pouquíssimo tempo atrás, inclusive.
Sim. Para não recuar demais no tempo, tanto o velho (P)MDB, quanto o PSDB de algumas décadas, e, é claro, o PT de anteontem (assim como uma pequena miríade de outras siglas), são exemplos de agremiações que já atuaram como partidos de verdade, capazes de buscar e até conseguir a realização de importantes objetivos políticos, com coerência programática, ação estratégica e considerável disciplina coletiva. Goste-se ou não dos resultados assim obtidos.
É claro que os puristas e chatos vão contra-argumentar citando fisiologismos, incoerências ideológicas, mudanças de rotas e alianças discutíveis nas trajetórias concretas desses e de outros exemplos do gênero. E sem dúvida, elas todas existiram, existem e continuarão a existir. Como tudo o que dura e importa na vida real e não na abstração dos modelos.
Mas nada disso impediu no passado, nem necessariamente impediria no futuro, que grupos articulados de indivíduos se unissem em torno de projetos comuns de poder e interferência efetiva na realidade, no sentido de alterar o rumo dos acontecimentos – ou preservar algo de valor que porventura estivesse sob ameaça – e assim produzir resultados práticos para toda a sociedade. Está, aliás, uma velha e ainda válida definição de partido político ou coisa parecida, creio (e desde que, é claro, fossem preservadas e respeitadas as regras básicas de competição que deveriam proteger a todos estes competidores).
Infelizmente, porém, nossa situação atual é tão lastimável que partidos políticos eficientes são tudo aquilo que, a rigor, não temos hoje, e que, a julgar pelo rumo dos acontecimentos, e pelas altissonantes vã-guardas politicamente indigentes que empurram hoje o país para uma longa noite sem rumo, tão cedo não teremos. Sem dúvida esse foi mais um belo serviço que devemos todos agradecer não só à reciclagem contemporânea das mais vetustas e hipócritas tradições antipartidárias brasileiras, mas também, por que não, à nossa querida mídia e à legião de intelectuais (!?) que nela pontificam diariamente, com sua autoridade técnica e moral insuspeita e seu proverbial (senão mesmo conveniente) desconhecimento basilar de teoria e história políticas. Pois que o mais evidente resultado da histeria moralista não é, obviamente, a instauração da "ética na política", mas, muito pelo contrário, o "salve-se quem puder", a captura de toda a ação partidária pelas imposições e urgências das cumplicidades que envolvem seus vários clãs, conventículos e máfias, e o escancaro das portas do Estado para toda espécie de rent-seeker e predador bem situado e privilegiadamente relacionado junto aos condôminos eventuais do poder. Ou seja: nenhum espaço para programas de políticas públicas mais abrangentes e dignas desse nome, e sim apenas um pregão de transações selvagens em torno do melhor quinhão do butim ou da manipulação mais imediatista e inconsequente dos marcos legais e (des)regulatórios. Com ou sem a embalagem grandiloquente e suspeitíssima de “reformas”!
O PT, a mais importante experiência de partido de massas em toda a diminuta história democrática brasileira, encontra-se destroçado. Parte por seus próprios erros, mas também, e muito mais, alvo da mais sistemática campanha de difamação e desconstrução que talvez já se tenha assistido por aqui. O PSDB e outras siglas hoje no poder, outrora também importantes, comprometeram tudo o que ainda restava do seu capital numa aventura inconsequente e na adesão a uma agenda política e institucional suicida. De modos que se vêm hoje inapelavelmente tragados pela mesmíssima tempestade que ajudaram a invocar contra os odiados rivais. Alguns de seus quadros e caciques podem ainda sonhar com alguma saída mais ou menos incólume do turbilhão atual (só a Providência – ou os arcanos esotéricos da Justiça e do Ministério Público – o sabem). Mas as legendas relegaram-se todas à vala comum do oportunismo imediatista, reféns de suas próprias culpas, cisões, receios, arapucas e disputas internas, e como tal se inviabilizaram para qualquer ação consequente. E assim serão lembradas – ou em breve devidamente esquecidas – pelos eleitores.
Quanto aos vários outros corrilhos de oportunistas, com suas legendas intercambiáveis, esses podem seguir usufruindo seus raros minutos de glória e vitórias mesquinhas, antes de serem definitivamente reduzidos à ignomínia ou insignificância histórica que sempre lhes foi e será destinada.
O mar definitivamente não está pra peixe.
Nem muito menos, para a ação consistente de grupos em defesa de interesses reais, certamente não universalizáveis, mas ainda assim capazes de interação produtiva de ordens sociais minimamente estáveis e previsíveis, e até marginalmente eficazes de um ponto de vista (re)distributivo. Os velhos e desprezados partidos democráticos de antanho.
É mesmo trágico. E receio que muito tarde.
Pois de fato parece que não resta muito antes que, afinal, a própria política e suas artes de negociação e acomodação de diferenças – completamente absorvidas e desfiguradas pelo vale-tudo atual – sejam definitivamente banidas em prol da demagogia mais deslavada ou do autoritarismo puro, simples. E inevitavelmente incompetente.

(melhor mesmo cair na folia e esquecer a realidade – ou refugiar-se de ambas, em boa companhia; pelo menos até a quarta-feira)

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