domingo, 26 de outubro de 2014

A diferença

Ainda mais cedo do que já antecipávamos, o terceiro turno começou, sem nem ao menos esperar o desfecho do segundo. Ainda nem se confirmou se Dilma será mesmo reeleita - tal como sugerido pelas últimas pesquisas do Datafolha e do Ibope - e a bandeira do seu impeachment já foi defraudada pelos arautos previsíveis.
Ao longo dessa campanha – mas, a rigor, há muito mais tempo – sempre me incomodou o modo simplista, eventualmente radical, e ultimamente grosseiro com que cada um dos lados da grande rivalidade política nacional tratava o seu inimigo. Nunca levei muito a sério algumas das principais acusações de parte a parte, nem consegui me convencer de que a vitória de qualquer lado pudesse significar tamanha tragédia de proporções épicas. Seja do ponto de vista macroeconômico, seja do ponto de vista das políticas sociais, muito menos ainda no que respeita às tão repisadas supostas razões da ética, da moral e dos bons costumes. Conversa fiada sobre “nova política”, então, sempre me deu urticária.
Sei também que meus amigos mais engajados, de cada lado, vão querer me demonstrar, por A + B - e agora certamente, com muito mais ênfase e alarme - que estou enganado e que não estou atentando devidamente para o risco que pode representar a vitória do lado mau nessa contenda. A meu favor posso apenas me vangloriar de até aqui não ter brigado a sério com ninguém, não ter bloqueado (ainda) ninguém da minha rede, nem (que eu saiba) ter sido bloqueado. Ao menos alguma vantagem existe em ser tão cético (ou cínico).
Pois bem.
Findo o último debate do 2º turno presidencial, devo dizer que sigo refutando todos os alarmes terroristas e todas as simplificações ideológicas ou partidárias. Mas ao mesmo tempo torna-se cada vez mais claro o porquê de minha escolha de lados na carnificina que se anuncia. 
Escutando os candidatos torna-se evidente aquela que para mim é a diferença principal: não se trata do cotejo efetivo das duas administrações – a do PSDB e a do PT – seja por qual critério técnico ou científico (?!); não se trata de saber qual a mais verdadeira ou plausível das muitas versões contraditórias e eventualmente distorcidas sobre tantos temas e áreas de ação governamental; nem de qualidades, defeitos, virtudes morais ou idiossincrasias de caráter pessoal de Dilma ou Aécio; de modo algum. E é claro que também não se trata de nenhuma proposta de policy concreta.
Mas sim o fato de que sempre que no último debate se falou sobre como resolver problemas reais – em especial nas perguntas dos eleitores indecisos convidados –, enquanto Dilma tendeu a responder, com eficácia retórica discutível (cá entre nós: retórica definitivamente não é o forte da candidata), mencionando algum programa ou projeto muito específico de seu governo, por sua vez Aécio, além de eventualmente se comprometer com grandes metas de realização, acabava sempre voltando ao mesmo ponto: seja qual for o assunto, tudo se resolverá a contento porque em seu governo a superioridade cognitiva, técnica e, last but not least, moral tucanas garantirão infalivelmente os resultados. Era para ele absolutamente desnecessário entrar em detalhes. Dado que, segundo sua avaliação, a administração petista é, intrinsecamente – ou seja: pelo simples fato de ser petista –, um desastre irremissível, de um modo ou de outro o desempenho de seu novo governo peessedebista será, em qualquer área, natural e forçosamente superior. A aposta é simples e direta: deem o poder ao PSDB e seus quadros altamente qualificados colocarão a administração do país nos devidos trilhos, dando aos itens da agenda de governo o devido tratamento. Seja qual for o problema. 
Nada muito diferente do que foi sempre o espírito das administrações tucanas, de 1995 a 2003: façamos as reformas estruturais necessárias, submetamos o plano de governo às diretrizes fixadas correta e cientificamente, dê-se ao Estado o seu escopo, função e lugar adequados e tudo o mais se desenvolverá a contento, no intervalo de tempo necessário. O mercado e a sociedade civil se encarregarão do resto. E se algum custo "marginal" momentâneo se elevar - desemprego, crescimento econômico pífio, redução da participação dos salários na renda, etc. - paciência. Afinal, não se faz omelete sem quebrar os ovos, nem existe almoço grátis. Desde que não se façam concessões "populistas" e se conspurque assim a pureza técnica do receituário... tudo se ajeita (afinal, os tais custos sempre podem ser naturalmente distribuídos pelos mesmos canais que deveriam transformá-los em forças virtuosas: o mercado e a sacrossanta sociedade civil).
Não chamaria isso de "neoliberalismo", ou coisa parecida; acho o rótulo inexato e a essa altura excessivamente contaminado. Prefiro chamar isso de variante mais tecnocrática dos vários neo-udenismos que empesteiam nosso ambiente político contemporâneo: a crença de que basta colocar no poder os quadros mais supostamente qualificados em termos morais e cognitivos, dotados da necessária vontade política e, pronto; tudo se resolve, e o benefício será então de todos. Desde que é claro o poder seja exclusividade dos mais bem preparados para isso (seja lá o que for tal preparo). E mesmo que a despeito da vontade soberana do eleitorado.
Voltando pois ao debate, não vejo nenhuma razão para desconfiar da autenticidade com que Aécio assim afirmou seus compromissos. Muito pelo contrário (se tem algo de que não podemos duvidar é da pose e da empáfia de um tucano; assim como da obstinação e teimosia dos petistas).
E creio que podemos até fazer um balanço bem equilibrado e desapaixonado das venturas e desventuras tanto dos governos de FHC, quanto dos de Lula e Dilma (por isso mesmo não engulo fanatismo e histeria radical).
Mas nada disso importa agora.
A escolha final deixada aos indecisos, conforme o desempenho dos candidatos anteontem, parece ser simplesmente entre o “varejo” de Dilma, e o juízo de cada um sobre a efetividade de seus vários projetos e programas específicos, ou o “atacado” de Aécio, ou seja, a aposta em seus compromissos e em suas qualidades intransferíveis para efetivá-los.
Não sei o que os eleitores, mais ou menos indecisos, soberanamente decidirão.
De minha parte não pretendo induzir o voto de ninguém, não tenho a pretensão de achar que minhas razões ou critérios de escolha sejam os melhores, nem universais, e muito menos endosso propaganda que pode ser enganosa. 
Mas definitivamente, em política, sempre que possível, prefiro não comprar no atacado.
Ainda mais quando o produto - mesmo que originalmente honesto e bem preparado  - vem embalado com tintas cada vez mais fortes de demofobia e golpismo.


sexta-feira, 3 de outubro de 2014

O terceiro turno

A essa altura do campeonato tudo leva a crer que, de um modo ou de outro, Dilma Rousseff será reeleita. Pode ser só em 26 de outubro, disputando com Marina - como as pesquisas seguem apontando -, ou com Aécio. Pode até ser já no próximo domingo.
É o desfecho mais provável. Mas ninguém garante. Minha bola de cristal, por exemplo, nunca funcionou muito bem. Este ano, então...
Na plausível hipótese de haver segundo turno, porém,e disso podemos ter certeza,este será ainda pior do que o primeiro, em matéria de radicalização.
E mais: que o próximo governo, seja de quem for, terá de lidar com a oposição mais ressentida e intolerante dos últimos tempos. Dentro e ainda mais do lado de fora do Congresso Nacional.
Ou seja: pode até não haver segundo turno. Mas do terceiro a gente não escapa.
Há duas fortes razões para que isso ocorra: a primeira se deve ao alto grau de incerteza que o pleito deste ano adquiriu por conta do acirramento e indefinição da disputa, resultando no fato de que chegamos à reta final do primeiro turno com três fortes concorrentes e, a princípio, três alternativas de resultados possíveis: Dilma X Marina, Dilma X Aécio, ou Dilma vencendo já no domingo. Em condições relativamente normais de temperatura política, essa indefinição poderia ser facilmente atribuída basicamente às ambigüidades do contexto de expectativas econômicas – como se sente hoje no cotidiano dos eleitores, e traduzida na profusão de bons e contraditórios argumentos técnicos que parecem se apresentar tanto à disposição da situação quanto das oposições -, e ao desgaste natural de permanência de um mesmo grupo no poder, por mais de uma década, num sistema tão competitivo como o nosso, hoje (o que, obviamente, corre em paralelo com o correspondente alijamento dos concorrentes; e mais dramaticamente, é claro, junto àqueles que perderam o acesso freqüente – ou mesmo permanente – que se acostumaram a oligopolizar sobre o controle do butim público e dos tradicionais privilégios de aparelhamento do nosso velho e bom Estado). De qualquer modo, e somente por tais características, a derrota - ou derrotas - já seriam naturalmente doídas (afinal, como qualquer torcedor sabe, por incrível que pareça, perder de 1x0 é pior do que de 7x1; quando se perde de goleada, não há o que discutir: o adversário foi muito melhor e ponto final; mas quando se perde de pouco, sempre se pode duvidar da justiça do placar; sempre aparece o indefectível e irritante questionamento: se aquele lance, ou aquela decisão do juiz tivessem outro desfecho, a história do jogo poderia ter sido outra; e haja ressentimento e dificuldade para aceitar a derrota). Mas é claro que o acidente com Eduardo Campos e a onda que se formou em torno da candidatura de Marina deram tons ainda mais dramáticos à tal incerteza.
O elemento que conspira mais fortemente para acirrar os ânimos, contudo, e formar nuvens escuras no horizonte, tanto de curto quanto de médio prazo, é, disparado, o tom raivoso e intolerante assumido pelo debate partidário, ou para-partidário. Em especial nos recantos soi-disant mais informados da intelligentzia nacional.
Sabemos que esse processo de radicalização tem história e não começou agora, nessa campanha (assim como ressoa a patologias políticas nacionais mais antigas, recorrentes, e de triste memória).
Mas o que impressiona é que não somente entre os próprios candidatos e suas propagandas, o que se vê hoje nos artigos de opinião e, principalmente, nas redes sociais, é uma troca cada vez mais acirrada e agressiva de gentilezas, provocações e alarmes de profecias catastróficas que de tão renitentes parecem desejar se auto-cumprir. Como se a vitória de qualquer um dos três candidatos mais competitivos pudesse representar de fato tamanho risco ou mudança de rumos, ameaça efetiva para as instituições democráticas, ou coisa parecida. Enfim, um melodrama de quinta categoria.
Entendo perfeitamente que para grande número dos variados militantes ora engajados na disputa, há muito que se ganhar ou perder (como disse, o butim é grande). Até aí, nada de muito novo.
O problema é que para outros tantos, igualmente envolvidos até o pescoço no confronto, mas sem as mesmas perspectivas concretas de ganho – ou perda –, a essa altura a disputa já se tornou simplesmente uma questão de honra. E confesso que não sei o que é pior: a luta sem quartel por “boquinhas” – que, inclusive, de “inhas” podem não ter nada – ou o engajamento ensandecido, motivado pura e simplesmente por paixões facciosas, mistificações ideológicas grosseiras, ou preconceito, insegurança e ressentimento de classe.
Seja como for, e pensando já em 2015 e no começo do próximo governo, acho bom começar a colocar as barbas de molho e pensar em alguma agenda de descompressão política.
Pois não existe ressaca pior do que aquela que se alimenta da embriaguez continuada e auto-induzida.
Ainda mais com altas doses de veneno.