O tempo se
bifurca perpetuamente para inumeráveis futuros.
Num deles
sou seu inimigo
(Jorge Luís
Borges, “O jardim de caminhos que se bifurcam”)
Espero estar redondamente enganado, mas creio que infelizmente já foi em
muito ultrapassado o que poderíamos chamar de ponto de não retorno da atual
crise política.
Como, porém, sempre guardo uma reserva, não digo exatamente de
esperança, mas sim talvez de pura teimosia e crença renitente no eterno retorno
da vida e da rotina – não necessariamente nessa ordem –, vou aqui exercitar ao
menos um leve esboço de imaginação para fora da crise (o que também não deixa
de ser um modo, mesmo que muito frágil, de não me omitir).
A primeira coisa a fazer é admitir que uma das grandes dificuldades do
momento é que não estamos propriamente diante somente de uma crise, mas sim, ao
menos, de duas: a primeira, que um pouco a contragosto chamaria de crise de
governabilidade, e a segunda, mais propriamente de radicalização política.
Separar claramente uma da outra, na prática, é impossível, eu sei. Mas a
distinção analítica aqui é simplesmente fundamental. Pois enquanto a primeira
ainda pode – pelo menos idealmente – ter alguma solução, talvez em médio prazo,
a segunda me parece de fato insolúvel (ou, pelo menos, vai demorar muito a ser
superada; e sabe-se lá a que custos). O mais trágico e desalentador, contudo, é
que há grande possibilidade de que a falta de solução para a segunda também
praticamente inviabilize a da primeira.
A primeira crise atual, a de governabilidade – nesse ponto não muito
diferente de outras do gênero, em contextos democráticos contemporâneos –, se
caracteriza pelo aprisionamento dos atores políticos do drama, mas em especial
o principal, o governo federal, num circulo vicioso de crise econômica,
impopularidade e perda de sustentação política, consequente paralisia
decisória, continuidade e agravamento do contexto econômico e social, e assim,
ciclicamente.
A essa altura do campeonato não faz mais diferença quem nasceu primeiro,
se o ovo ou a galinha, mas sim como romper o círculo, se isso é possível.
É claro, porém, que para os atores mais engajados e mobilizados para a
guerra, a questão, digamos, "hermenêutica", acerca não só da origem
da crise, como também da atribuição de culpas e responsabilidades por ela, não
é de modo algum secundária. Para estes isso é essencial, já que por força de
seus engajamentos atribuem pesos estratégicos muito mais dramáticos – ou
trágicos – à cada detalhe ou dimensão do processo. E assim, independentemente
de seus objetivos ou intenções, reciclam e amplificam o grande enredo da crise
e vários de seus elementos constituintes,
Daí chega-se à segunda crise e aos fatores complicadores da primeira, para
além dos mecanismos inerentes a esta.
A segunda crise, obviamente, é a do já mencionado processo de
radicalização. Há uma série de forças intervenientes aqui, e algumas delas, a
rigor, são relativamente independentes tanto do primeiro processo, quanto de
seus desdobramentos. Poderíamos mencionar o que muitos chamam de judicialização
da política – mas que para mim soa às vezes muito mais como extra-politização
do Judiciário –, a crise específica da grande mídia e sua partidarização, a
autonomização das mobilizações sociais via redes, etc. No ponto em que estamos,
porém, importa menos identificar causas e processos iniciais do que reconhecer
o caráter autônomo e retroalimentador do próprio processo de radicalização.
Aqui também há poderosos círculos viciosos em operação.
Por fim, com a interação entre a crise econômica e política
institucionalizada, e a da radicalização ideológica, instala-se uma dinâmica
perversa, onde as próprias possíveis soluções menos apaixonadas aventadas para
a primeira parecem ser capazes apenas de alimentar a segunda. E cá estamos nós
de novo enredados em outro círculo.
Com efeito, do lado da esquerda, não acredito que alguém possa alterar o
convencimento que muitos ali demonstram de que o que está se passando é
simplesmente a evolução sistemática de um golpe de Estado, articulado
conjuntamente pelas oposições, grande parte da mídia, e ramificações do Poder
Judiciário, do Ministério Público e setores da Polícia Federal. Do outro lado
do espectro, à direita, a ação destes últimos agentes é recebida como sendo
apenas parte do funcionamento natural de suas rotinas, ou, ao contrário, como
uma espécie de cruzada moralizadora, mas que de qualquer modo estaria levando à
investigação e ao desvelamento de esquemas de corrupção que, no que diz
respeito exclusivamente ao PT e seus governos, revelariam, no entanto, um
projeto de perpetuação do partido no poder, e mais grave, expondo o que chamam
de seu "DNA autoritário e bolivarianista" intrínseco e incorrigível.
Não faz muito sentido, no momento, entrar no mérito de quanto há de
possível verdade – ou paranoia, ou ainda, simples retórica irresponsável – em
sedutoras construções narrativas como essas. Afinal, se há alguma coisa que não
tem – nem costuma ter – qualquer eficácia prática no enfrentamento de um
processo de radicalização política e ideológica, como o atual, é a possível
percepção conceitual e histórica mais justa e precisa das razões e etapas do
mesmo.
Mas diante da segunda crise e sua aceleração, soa
simplesmente cômica, se não fosse trágica, a crença de que uma simples
substituição de governo poderia hoje encaminhar alguma solução consistente e
duradoura para a primeira crise, onde situamos o problema de governabilidade e
o contexto econômico e social, mais propriamente dito. Aqueles que advogam tal
rumo, não se sabe se com maiores ou menores doses de wishful thinking,
ingenuidade ou de cinismo, lembram mais bombeiros desastrados que tentam apagar
um incêndio jogando ainda mais gasolina no fogo. E o mesmo raciocínio é ainda
mais válido se tal substituição vier embalada em algo ainda mais ambicioso e
temerário, mesmo que aparentemente mais técnico e apartidário, como uma reforma
mais ampla e a toque de caixa do próprio sistema de governo.
A deposição da atual presidente, ou sua neutralização, ainda que por
qualquer caminho razoavelmente constitucional – e somente assim – poderia,
talvez, trazer até algum alívio momentâneo a certos mercados, e algum frágil
sentimento conjuntural de normalidade ou de correção de rumos. Mas no estágio atual,
e com esse estado de ânimos que estamos testemunhando, dificilmente teria vida
longa e eficaz. Em breve muito provavelmente assistiríamos o novo governo
paralisado de modo muito similar ao que vemos hoje e a radicalização agravada. Certamente
que não exatamente pelos mesmos personagens ou fatores, mas outros, igualmente implacáveis.
O problema maior, portanto, é que esse tipo de falsa solução da primeira crise
somente acirraria ainda mais a segunda.
Por outro lado, é bem provável que a manutenção do atual governo, no
mesmo diapasão que o acompanha desde o seu reinício formal, possa servir também,
no contexto atual, apenas para agravar ainda mais ambas as crises. De fato, para
além de idiossincrasias próprias ao primeiro, nada indica que as forças
inconformadas desde 2014 com a reeleição de Dilma e a continuidade da
administração petista irão se acalmar ou deixar de pressionar, pelo menos
enquanto não houver algo que considerem uma significativa mudança.
Em favor de uma solução (ou milagre) para a crise maior, com a
manutenção e/ou iniciativa do governo atual, restaria "apenas" o
fator constitucional e institucional chave de que, a despeito de todas as
tensões e insatisfações profundas que mesmo assim fatalmente sobrevirão, neste
ou naquele setor, de um modo ou de outro se poderá assim resguardar as
principais instituições do regime. E aí sim, os futuros governos, sejam lá de
quem e quando for, terão chances um pouco maiores de exercer minimamente os
seus mandatos, e tentar administrar os problemas do país, contando para isso,
talvez, com um pouco mais de sustentação e aquiescência.
Ou seja: a solução menos simples e menos crível imediatamente – mas
talvez a mais eficaz a médio e longo prazo – para a primeira crise, poderia ser
a que, de um modo ou de outro, fosse buscada com o atual governo eleito, e não contra ele, ou à sua revelia.
De qualquer modo, a única saída efetiva para essa crise seria, pois, o
rompimento, em algum ponto, do primeiro círculo vicioso, o da crise econômica e
político-institucional. Já que o segundo, o da radicalização, parece
insuperável.
Infelizmente, o que mais assusta, entretanto, é que dada a dinâmica
própria, e a essa altura relativamente autônoma, assumida por essa crise de
radicalização, todos os futuros movimentos de cada um dos protagonistas do
drama tenderão somente a reafirmar e a fortalecer cada uma das convicções
antagônicas de parte a parte, e as "éticas" a elas correspondentes.
De modo, pois, que o mais provável é que este pesadelo, de crises que se
bifurcam – e tornam a se cruzar –, apesar de já tão longo e tedioso, esteja na
verdade apenas começando.
Resta saber que caminhos se abrirão para nós e com que
mapas ou bússolas poderemos nos conduzir nesse labirinto.