sábado, 31 de dezembro de 2016

Últimas de 2016: entre a histeria e a depressão


Juro que tentei levar as promessas da democracia a sério e tratar a política como objeto de uma ciência razoavelmente racional. Econômica até. Mas cada vez mais me convenço de que a melhor formação para o entendimento mínimo da coisa exige uma imaginação definitivamente clínica, psicologética, quando não pura e simplesmente psiquiátrica.
Já tive inclusive oportunidade de me aventurar anteriormente no campo da oftalmologia sociológica política, ramo que me orgulho de ter inaugurado (salvo evidência histórica em contrário, e até hoje não encontrada), pelo menos no que diz respeito ao tratamento da chamada hipermetropia política (porque outros males, como a miopia política, já foram de certo modo diagnosticados bem antes, por vários outros observadores; como é sabido, o hipermétrope político é aquele paciente que só consegue enxergar o que se encontra muito distante dele, principalmente no tempo, e é incapaz de discernir as formas mais próximas e imediatamente localizadas).
Mas hoje outro tipo de patologia se impõe à nossa atenção e análise: trata-se da bipolaridade política. Ou seja: a alternância mais ou menos cíclica entre estados de euforia e hiperatividade e de depressão profunda e total, ou quase imobilismo.
Em paralelo à epidemia de miopia política – na verdade, uma variante extraordinariamente agressiva e fatal do gênero – que assolou o país nos últimos anos, o que certamente não passou despercebido pelos experts foi o surto igualmente massivo de bipolaridade. Aliás, é importante que se esclareça logo que, tal como a maioria das patologias políticas – e diferentemente de sua homônima clássica – essa forma específica de bipolaridade é altamente contagiosa.
Pois bem.
Não há dúvida de que a síndrome atuou e atua no Brasil, hoje, de modo alarmante, e, o que é pior, sem que as autoridades competentes tomem qualquer atitude diante da gravidade do fato.
Talvez seja exatamente um problema de "autoridade" e de "competência". Já não sei.
Mas é claro que não pode haver outra explicação clínica para o modo como se oscilou tão dramática e radicalmente de estados de verdadeira histeria política, tal como presenciados inúmeras vezes ao longo de 2016, para se cair, em seguida, em tão profunda e generalizada depressão.
Há quem ainda acredite em causas coletivas, minimamente racionais, de natureza social, econômica e até mesmo político-institucional para a difusão de tal enfermidade. Argumentam que uma crise econômica renitente, o consequente agravamento das tensões sociais, ou a frustração diante da metamórfica capacidade regenerativa da corrupção nacional endêmica – mesmo quando desafiada por bravos e impolutos higienistas – seriam, entre outros, menos votados, os fatores principais causadores da doença. Ou que alguma dieta excessiva ou exclusiva de determinadas fontes midiáticas de informação também pode levar a um agravamento do quadro clínico.
Eu também já pensei assim...
Mas...
...
Agora...
...
Pois éeeeee....
.......
Zzzzzzzzzzzz....
Hum..... hum......
Zzzzzzzzzzzz...
Hum...
Ronc, ronc...
Zz...
Z..

Ahn??!!!
Oi...
Ah... sim... claro... como dizia...
...
Mas hoje, neste momento de confraternização e entusiasmo que nos envolve, e diante do contexto geral de absoluta normalidade em que estamos inseridos, não é possível chegar-se a nenhuma conclusão distinta daquela que nos assevera que só são acometidos por tal doença – e muitas outras também – aqueles que assim o desejam. Os que evidentemente não possuem a força de vontade, os méritos e a atitude positiva e necessária para superar os obstáculos naturais da vida.
Afinal, é tudo uma questão de escolhas e capacidades individuais, não é mesmo?
Quem pode, pode!
O mundo é dos espertos!
É isso aí!
Bola pra frente!!
Vamos à luta!!!
Show!!!
Pois a festa é sua, hoje a festa é nossa, é de quem quiser...
Jingle bells! Jingle bells!
Hillary, Hillary, Hillary ê!!
Ho! Ho! Ho!
....
(Chega! Alguém, por favor, devolva minha depressão... já!)
....
....
Obrigado.
Feliz 2017.
(Não me pergunte como).

domingo, 10 de julho de 2016

A "normalidade", o processo e a fatura (ou, hora de mudar a decoração)

São louváveis, embora altamente discutíveis, as tentativas de recuperação da legitimidade e de alguma estabilidade política efetiva para o país com base numa negociação em torno da recondução de Dilma ao governo, em troca de um compromisso seu em torno da convocação de um plebiscito sobre novas eleições presidenciais. E diante do quadro lastimável proporcionado cotidianamente pelo governo interino e suas bases de sustentação – dentro e fora do Congresso Nacional –, não deixa mesmo de ser atraente também a perspectiva de, pelo menos, podermos assim nos livrar logo dos usurpadores da hora.
Também não se trata propriamente de alguma novidade histórica. Já se tentou antes resolver grandes crises e impasses políticos com soluções extraconstitucionais e extemporâneas. E às vezes até se obteve algum alívio ou trégua momentânea.
Parte-se neste caso, porém, de uma premissa correta – a de que qualquer tentativa de relegitimação do regime passa necessariamente pela recondução ao poder de quem fora legitimamente eleita para isso, não havendo razões jurídicas suficientes que justifiquem seu impedimento – para se propor um arranjo que embora possa viabilizar provisoriamente a realização concreta de tal premissa (se um número suficiente de senadores puder ser assim convencido a votar contra o impeachment), mas que acaba por deslegitimar a própria ideia original, além de, em seguida, inviabilizá-la: já que a condição política sine qua non para o retorno de Dilma seria justamente seu compromisso com uma intervenção institucional radical que implica simplesmente a abdicação do restante de seu mandato legitimamente conquistado nas urnas de 2014. Não importando quem será, afinal, o beneficiário maior de uma eventual antecipação das eleições presidenciais.
Volta-se assim ao motor político inicial da crise e seu caráter intrínseco e inescapavelmente golpista desde a origem: parafraseando um famoso especialista em golpes de outrora, Dilma, ou qualquer outra liderança petista, não podia ter sido (re)eleita. Eleita, não poderia ter tomado posse. Empossada, teria de ser destituída.
Seja qual for o pretexto para isso, pedalada ou outro casuísmo qualquer.
E agora parece que só poderá ser eventualmente reconduzida ao seu lugar de direito se o for para aí não permanecer. Cobrindo com um pouco de verniz legal o golpe já dado e consumado neste país. Certamente que já seria algo mais do que pode aspirar em matéria de legitimidade o governo interino do usurpador. Mas ainda assim é muito pouco.
E nada disso poderá deter a continuidade do processo do golpe, que é mais amplo e mais profundo.
Como já disse anteriormente, o ponto de não retorno já foi ultrapassado há muito.
Isto se consumou quando, por assim dizer, importantes setores das "Sociedades Civil e Política" brasileiras optaram, mais uma vez, por sacrificar a democracia e o Estado de Direito em prol de uma solução imediata e imediatista tanto para suas aflições, interesses e dogmatismos econômicos quanto para suas ambições políticas (novamente frustradas pela via institucional; ou seja: duvidosamente viabilizáveis por meio do voto popular).
Os mais ou menos precários ou abrangentes consensos que algum dia podem ter existido neste país em torno, acima de tudo, da inviolabilidade da ordem constitucional democrática, mas também da necessidade de se equilibrar responsabilidade fiscal com políticas de crescimento e redistribuição de renda, foram perdidos.
E o que não foi comprometido mais diretamente pelo golpe, já vem de muito sendo solapado pelas ondas de moralismo hipócrita e inconsequente, acirradas pelo denuncismo irresponsável.
Como disse há algum tempo, a caixa de Pandora foi escancarada, não fecha tão cedo, e ninguém sabe o que ainda pode sair dali, de par com a exposição pública das vísceras do velhíssimo submundo da traficância público/privada, onde durante séculos foram gestadas tantas "respeitáveis" fortunas, e em grande medida mantida e preservada a distância abissal que separa as nossas "pragmáticas" elites dirigentes das numerosas classes mais desfavorecidas e desprezadas. Convenientemente relegadas pela "ordem natural das coisas", mas imperdoavelmente empoderadas via voto (e outros canais) ao longo do regime balizado pela Constituição de 1988 (A Nova Defunta).
Assim, a espinha dorsal do sistema político e partidário, que com todos os seus muitos defeitos não obstante foi responsável durante mais de três décadas pelos maiores avanços sociais e institucionais da nossa trajetória republicana, está destruída. E o que resta em matéria de capital político-partidário minimamente digno desse nome, embora dia a dia se mostre cada vez mais precioso – justamente nesta hora terrível de colapso institucional –, não parece ser capaz de deter as marés montantes da reprivatização deslavada do público, da reação e do golpismo.  
Apostas em soluções extraordinárias são compreensíveis, mas não vão nos valer muito agora.
O único começo de saída para salvar o que resta do regime, por mais improvável que seja, seria o fim definitivo dessa farsa com o arquivamento do processo do impeachment, a recondução de Dilma ao poder sem condicionantes, e a imperativa renúncia de Michel Temer à vice-presidência (já que com seu comportamento desleal torna-se inviável a sua permanência no cargo; nem como vice decorativo).
Qualquer alternativa, ou saída excepcional, só poderá servir como paliativo ou adiamento precário e provisório da fatura que terá de ser paga. De um modo ou de outro. Agora, ou num futuro mais ou menos imediato.
Podem até ser tal plebiscito e a antecipação das eleições, ou coisa parecida, muito mais, ou alternativa melhor do que o disponível hoje, com a perspectiva de continuidade da “interinidade”. Não duvido. E, dependendo das circunstâncias, posso até, sem maiores convicções, apoiar.
Mas nada que justifique qualquer ilusão.

quarta-feira, 15 de junho de 2016

"Não foi exatamente o governo que terminou..."

Já tive a oportunidade de me manifestar anteriormente sobre o polêmico e importante debate sobre des/regulação da mídia e como certos elementos e argumentos do mesmo há muito me soam como totalmente fora de esquadro. Mas existem aspectos históricos deste velho tema que, creio, continuam perfeitamente atuais e válidos. Um deles é a importância crucial de uma pluralidade de formatos de propriedade e de gestão dos veículos de comunicação para uma sociedade que ainda tenha a pretensão de ser chamada de democrática.
Um exemplo claro dessa necessidade pôde ser observado na recente entrevista concedida pela presidente Dilma Rousseff ao jornalista Luís Nassif e transmitida pela TV Brasil há poucos dias.
Sejam quais forem as qualidades e defeitos técnicos, jornalísticos ou televisivos da matéria, o que ficou claro para quem assistiu – além, é claro, da importância por si só do conteúdo e da oportunidade de sua veiculação – foi a constatação de que uma entrevista como aquela, com tamanha disponibilidade de tempo e respeito ao entrevistado e a seus argumentos, jamais poderia ser feita e assim transmitida pela maioria esmagadora das emissoras de TV disponíveis hoje no país. E para isso nem mesmo seria preciso invocar alguma razão ideológica ou partidária, tal como as que hoje parecem tomar de assalto as nossas redações. Mas sim porque o modelo hegemônico de "telejornalismo" imposto aos jornalistas das TVs comerciais brasileiras simplesmente não o permitiria.
De fato, devemos agradecer e valorizar não somente o fato de nosso atual arcabouço de organização da comunicação pública, mesmo com todos os seus defeitos e limitações, nos permitir um mínimo de pluralidade editorial, mas acima de tudo o que ainda restam de garantias jurídicas vigentes, e que impediram – ao menos por enquanto – a mudança ilegal de comando na referida emissora pública, o que nos deu a oportunidade de assistir entrevista tão importante.
Mas voltando às vicissitudes mais ou menos estruturais da chamada grande mídia televisiva, teríamos como primeiro fator crítico, obviamente, o tempo de entrevista. Com raras exceções, há muito pouco espaço disponível nas grades de programação para o debate de temas de interesse político, e muito menos oportunidade de argumentação e esclarecimento necessários a temas muitas vezes complexos e que demandam informação adicional frequentemente indisponível ao telespectador. Ao contrário do que sucedeu entre Nassif e a presidente, é muito raro ter um entrevistado tanto tempo para desenvolver um raciocínio um pouco mais denso do que manda e demanda a idiotia pseudo-objetivista – parafraseando o velho Nélson – das cartilhas seguidas hoje por certas celebridades travestidas de jornalista que abundam nas nossas telinhas.
Por isso, também a linguagem e a postura adotadas na entrevista da TV Brasil destoam completamente do padrão usual e atual das TVs comerciais brasileiras. Principalmente quando o entrevistado pertence ao mundo político, aquele mesmo que é tantas vezes tratado a pontapés pelos jornalistas e televisivos, como se houvessem muitos ambientes corporativos neste país – a começar pelos da mídia – que não pudessem rivalizar com o de nossos representantes, em matéria de corrupção, mandonismo, favoritismos, nepotismo e hipocrisia.
Como o próprio Nassif aponta em sua coluna a respeito (http://jornalggn.com.br/noticia/o-prego-no-vinil-de-o-globo), mesmo sem abdicar da crítica e de perguntas incômodas, ele não incorreu, contudo, na arrogância e na agressividade que muitas vezes levam alguns dos mais celebrados entrevistadores de hoje a, em nome de moralismos tacanhos – a rigor, ora de olho na audiência, ora a serviço de interesses convenientemente restritos aos bastidores –, a se servir do entrevistado como escada para a confirmação de sua própria e prévia versão dos fatos, ou simples autopromoção, muitas vezes confundindo jornalismo com interrogatório policial, ou ainda assumindo ares severos e presunçosos de palmatória da humanidade. Avocando-se "mandatos" que ninguém delegou e que tais "jornalistas" não possuem competência ou legitimidade alguma para exercer.
O pior de tudo não me parece ser, porém, a famosa pressão por audiência a qualquer custo – que, por si só, poderia explicar em grande parte tanto a falta de tempo quanto a superficialidade e a parcialidade muitas vezes elementares das pautas de entrevistas –, mas sim uma força talvez maior e por vezes tão deletéria: a combinação fatal do hábito – ou vício – e do preconceito, com a submissão a fórmulas batidas, ao medo de inovar e, não raro, sob um controle editorial de conteúdo em que muitas vezes a arrogância e o desrespeito à inteligência do leitor só podem ser equiparados a uma enorme ignorância. Não só em matéria de jornalismo, propriamente dito, e sua ética profissional mais básica, mas frequente e principalmente no que diz respeito à história do país e a como entender a complexidade de sua sociedade e suas instituições.
Felizmente, apesar da mixórdia geral que predomina na grande mídia, as exceções existem, e a revolução digital em curso já começa a nos brindar com exemplos promissores de renovação e inovação da velha e fundamental arte de informar o público com um mínimo de respeito e competência.
De qualquer modo, nunca encontrei melhor exemplo do autocentrismo e da ignorância fatais que assolam algumas de nossas principais e mais poderosas redações do que o de um jovem repórter que há muitos anos, conversando com meu saudoso colega de pesquisa, Plínio de Abreu Ramos, assim consultava sua rica e arguta memória da política brasileira: "mas, diga-me então professor, como foi mesmo que terminou o segundo governo de Getulio Vargas?". "Ora, meu filho", disse-lhe pacientemente o sábio e venerando colega: "não foi exatamente o governo que terminou...”.

segunda-feira, 6 de junho de 2016

A montanha


Reza a sabedoria militar oriental – exemplificada em figuras como o poderoso senhor da guerra Takeda Shingen, líder feudal japonês do século XVI, personagem do clássico Kagemusha, de Akira Kurosawa – que um grande exército deve ser impassível como uma montanha, e como tal não se move. 

Resultado de imagem para kagemusha

Acho que a mesma metáfora caberia bem à trajetória e ao transe atual daquele que, em números – mas certamente não em estatura, consistência programática ou credibilidade – é ainda o maior partido do Brasil.
Uma vez que assim como no filme do genial cineasta japonês – em que o desmascaro do sósia-impostor que ocupa o lugar de Shingen, morto, conduz o herdeiro deste a se precipitar fatalmente no campo de batalha –, o interino da nossa presidência parece ter cometido erro similarmente grave, com seu grande e pesado partido, ao deixar os bastidores do grande teatro político nacional e aventurando-se no proscênio: moveu-se.
Resta saber se o destino da nossa "montanha" será o mesmo, ou comparável, ao do clã Takeda, no filme de Kurosawa.


segunda-feira, 23 de maio de 2016

A volta dos mortos-vivos (mais vivos do que nunca)

Nem bem se passou uma semana da consumação inicial do golpe, e o show de horrores com que nos brindaram o usurpador-interino e sua entourage conseguiu não somente confirmar os piores prognósticos daqueles que antes soavam alarmistas diante do rumo previsível dos acontecimentos – há mais de um ano –, como também constranger membros da legião de liberais e democratas de ocasião que entraram de gaiatos no navio do impeachment maroto e, desde a origem, suspeitíssimo. Com efeito, para muitos destes aprendizes de feiticeiro parece que não fazia parte do enredo de exorcismo ansioso dos bodes expiatórios petistas essa sucessão de nomeações indigestas e primeiras iniciativas assustadoras da nova administração e de sua ansiosa base de apoio pra-lamentar (oops!).
De fato, não deve ser muito agradável para quem jogou suas fichas no golpe, apostando numa higienização imediata da corrupção nacional endêmica – ou numa eugenização seletiva do poder – ver assumir os altos escalões da recém-reinaugurada republiqueta nomes dignos de um programa de pós-graduação – de excelência! – em picaretagem política e privatização do Público. Nem, para tantos soi-disant progressistas, desiludidos e ressentidos, assistir, também graças a seu apoio, mais ou menos entusiasmado, ao assanhamento incontinenti dos dignos representantes dos grotões mais repulsivamente reacionários e energúmenos da sociedade neo-pós-escravagista brasileira, que se julgam agora vitoriosos, livres e desimpedidos para dar largas à sua sanha fascistóide. Periga até mesmo a alguns cultores da metafísica do mercado e suas mãos invisíveis – mesmo que animados pelas promessas e slogans convencionais, austeros e ortodoxos dos novos corretores da banca – se sentir, no entanto, incomodados ou inseguros diante do currículo (ou prontuários) de seus novos companheiros de viagem: será que dá mesmo para confiar no rigor técnico, na probidade, na solidariedade, no comprometimento e no espírito de sacrifício dessa turma?
E a relativamente grande massa que tanta esperança nutriu com a perspectiva de se livrar da "querida"? Está pronta a pagar o bendito pato e a conta que se prepara para seus bolsos e interesses? Falando em cota de sacrifício...
Pois é.
É duro viver sob os ditames e pressões de uma atmosfera contaminada pela manipulação da informação e pela radicalização política e ideológica. E uma vez instalada esta última, perde-se facilmente de vista tanto a memória de como ela começou a ser irresponsavelmente insuflada, quanto, ainda mais, a sua possível superação futura.
Pior do que isso, talvez, só mesmo ter que aturar a arrogância, a desfaçatez e os ultrajes de um governo ilegítimo, recheado de oportunistas – eventualmente desprovidos tanto de credenciais quanto de votos –, referendado por adesões cínicas e sem qualquer credibilidade, e entronizado por um arremedo canhestro de legalidade. Ainda por cima com mínimas perspectivas de sucesso no encaminhamento de soluções razoáveis para qualquer crise.
Mas talvez, mais insuportável ainda seja assistir à cumplicidade e à pusilanimidade de quem poderia, quem sabe, evitar tudo isso, a rigor teria a obrigação moral e institucional de pelo menos tentar evitar tudo isso, mas preferiu e prefere se omitir em sua pseudo-autossuficiência.
Resta, porém, a esperança de que este filme de terror estimule as hostes de indecisos e eventuais arrependidos a rever senão suas preferências – que podem até ter lá suas boas razões –, mas sim os meios e métodos infelizes que foram levados a endossar, e, acima de tudo, as alianças comprometedoras, mais ou menos contingentes, que andaram engolindo.
Já que em horas como essa vale ainda mais o princípio de que pode ser muito melhor andar só – ou com uma boa minoria – do que tão mal acompanhado.

quarta-feira, 11 de maio de 2016

Trinta anos esta noite (O ineditismo do golpe e suas temporalidades)

O caráter aparentemente inédito do golpe em desenvolvimento no Brasil, hoje, coloca para nós uma série de graves problemas e desafios novos. Um dos mais sérios tem a ver com a crescente autonomia e com as temporalidades do processo em si, o que impacta profundamente suas consequências e significados. Em sentido amplo, e independentemente dos próximos capítulos dessa novela de profundo mau gosto e agouro, se pode dizer que o ataque à democracia já foi devidamente consumado. Mesmo que o impeachment de Dilma Rousseff ainda pudesse ser efetivamente barrado ou revertido pelo Legislativo, ou anulado pelo STF, o sacrifício da Carta de 1988 e a consequente ruptura institucional – e também para-institucional, ou meta-institucional –, depois de três décadas, já é fato.
Não digo isso para acirrar ânimos – como se fosse necessário! –, nem, muito menos, para minimizar ou desanimar os esforços dos que se opõem ao golpe, em suas tentativas de, ainda, reverter o quadro atual, ou já se preparar para fazer frente ao que, tudo indica, nos aguarda de ruim. Também não menosprezo as diferenças de cenários possíveis e antagônicos entre as prioridades de um provável governo Temer e as de uma ressurreição do mandato da atual presidente (ou ainda outra alternativa, menos visível hoje). De modo algum.
Mas quando nos voltamos para o quadro mais amplo do funcionamento das instituições e do contexto ético e moral da vida política e social no país, ou seja, nos voltamos para as expectativas que se pode nutrir acerca do modus vivendi e do modus operandi na sociedade brasileira daqui em diante, o quadro é desolador e, sinto muito, as expectativas são as piores.
Ao contrário das costumeiras quarteladas do passado – cujo precedente parece levar muitos incautos a pretender que na ausência delas não se pode sequer falar em golpe – a subversão "pacífica" da ordem constitucional que assistimos já começa a produzir seus efeitos perniciosos muito antes de qualquer desenlace, além de certamente deixar sequelas que serão muito mais duradouras do que aquelas que muitas vezes uma escaramuça militar à moda antiga poderia nos legar.
Se é que se pode dizer isso, uma das "vantagens" dos velhos putsches militares, paramilitares, ou civil-militares, era a sua rapidez e sua frequente e relativa exterioridade com relação à sociedade. Mesmo quando assumiam feições efetivamente revolucionárias – e assim ultrapassavam, de algum modo, o âmbito restrito de seus conspiradores – tais intervenções, em geral, eram relativamente curtas. Ou davam certo, e se impunham pela força ou pela dissuasão, sem maiores subterfúgios, impondo seus diktats à sociedade mais ou menos impotente, inerte, conivente, surpresa, contrariada ou indiferente – e o tempo se encarregava de "legitimá-los", ou descartá-los, no vencimento de suas validades; em geral restritas estas à vigência de sua capacidade de obter o apoio militar necessário e impor o temor, pura e simplesmente –, ou então eram rapidamente sufocados e a ordem legal vigente se fortalecia (ao menos por algum tempo). De qualquer modo, dado o caráter extemporâneo, rápido, às vezes espetacular de tais intervenções, mas acima de tudo a sua clara intenção e expressão disruptiva, o retorno à "normalidade" podia se dar mais pronta e facilmente. As próprias expressões autolegitimadoras típicas – "intervenções salvadoras", "regime de exceção", etc. – traíam esse caráter assumidamente excepcional e efêmero atribuído a tais movimentos.
Ora, o primeiro e mais grave problema do "putsch" em evolução agora é o seu simulacro rastaquera de legalidade, constitucionalidade e, portanto, normalidade democrática. É um tipo de golpe aparentemente inédito no Brasil, e feito, por assim dizer, por dentro das instituições, tanto as de Estado quanto de certa Sociedade Civil. Corroendo-as intestinamente – e podemos aqui levar a metáfora às suas últimas consequências, inclusive as olfativas – e expondo suas vísceras à luz do sol.
O segundo e também terrível aspecto do processo é o da sua temporalidade. Teve sua origem num relativamente longo período de maturação e arregimentação mais ou menos sistemática de forças e argumentos que convergiram para a caracterização de um veredito – culpada! – muito antes (a rigor, independentemente) de que houvesse propriamente o correspondente crime. Desse modo, avalizou-se toda e qualquer chicana jurídica, toda e qualquer manobra política espúria, toda e qualquer pirotecnia justiceira, toda e qualquer manipulação grosseira de informações e imagens públicas, toda e qualquer mobilização de poderosos recursos econômicos e logísticos – de fontes talvez idôneas, ou nem tanto –, mas todos necessários à produção de determinados resultados políticos cuja depuração paulatina os torna cada vez mais bem definidos: a reversão da decisão popular nas urnas de 2014, a usurpação da presidência da República, a inviabilização de qualquer candidatura futura da principal liderança política popular do país, e, se possível, o extermínio de seu partido e de tudo o que ele ainda possa representar (em vários sentidos). Tudo isso, é claro, sem a menor cerimônia ou preocupação com a legalidade, a constitucionalidade, a manutenção das instituições, em suma, com a legitimidade do sistema político e jurídico e o equilíbrio mínimo da ordem social e econômica. Assim, além de deitar raízes num considerável intervalo prévio de tempo e, por assim dizer, de preparação – certamente coletiva, mas de modo algum necessária e inteiramente deliberada –, os efeitos perversos dessa aventura irresponsável se farão notar por muito mais ainda no futuro. Sabe-se lá até quando. Já que a grande e sintética lição assim legada por essa versão pseudo-maquiavélica tupiniquim de realismo político, a todos e a qualquer um, de alto a baixo, do mais humilde cidadão ao mais poderoso membro de qualquer elite, é uma só: vale tudo.
Por isso mesmo, e por fim, o último e talvez mais lamentável aspecto da empreitada é justamente o de sua inegável “representatividade” relativa, de suas estreitas vinculações com certa parcela significativa de nossa sociedade. Certamente que aqui não se enxerga nenhum traço revolucionário. Justamente ao contrário disso, é um movimento que ganha talvez seu principal empuxo das profundezas mais reacionárias da sociedade brasileira. Mas acima, ou ao lado, de tais forças, e provavelmente superando-as numericamente em muito, parecem alinhar-se, com maior, menor ou nenhum entusiasmo, contingentes diversos e mais indefinidos de cidadãos brasileiros, movidos pelas mais diversas razões – muitas delas, aliás, merecedoras de grande respeito e atenção –, que se igualam, porém, no mesmo traço basilar e comum: um olímpico desprezo, ou indiferença, pela atual democracia representativa, suas regras, seus riscos e custos. Prontos a abrir mão, desse modo, também dos benefícios e bens coletivos que tal regime – e que se saiba até aqui só ele – é capaz de fornecer.
E é justamente essa última experiência democrática, tão jovem e tão rara em nossa história, e tão imprescindível para qualquer real solução de nossos muitos problemas políticos, econômicos e sociais, que o golpe em curso já feriu de morte. Sejam quais forem os seus próximos desenvolvimentos.
Sei que para muitos – e desconfio que são e serão muitos, mesmo, cada vez mais –, como se diz, a luta continua. E parece estar apenas começando.
Quanto a isso não arrisco prognósticos, nem a curto ou médio prazo.
Mas democracia neste país? De novo? Tal como tivemos o privilégio de desfrutar nas últimas três décadas?
Voltará, com certeza. Mas só Deus sabe quando.

quarta-feira, 27 de abril de 2016

Realismo chinfrim e legitimidade democrática (ou, “E eu que me achava cínico...”)

Só tem uma coisa nessa crise que me espanta mais do que a tranquilidade com que alguns especulam sobre a montagem de um eventual governo Michel Temer – como se houvesse aí qualquer perspectiva política consistente de recuperação da governabilidade, melhoria da situação e enfrentamento da crise econômica, num prazo minimamente razoável: trata-se da naturalidade com que outras pessoas, inclusive algumas que até já se colocam na oposição a um futuro governo do atual vice, se mostram, no entanto, perfeitamente dispostas a abrir mão de qualquer resquício de legitimidade democrática, aceitando o atual processo de impeachment como uma fatalidade, ou mal necessário. Já que, segundo eles – e aí muitas vezes completam com um muxoxo, ou dão de ombros – "o governo Dilma já acabou mesmo...".
No primeiro caso, pode se tratar pura e simplesmente de autoengano, ou, como se diz, wishful thinking. Mas o segundo me parece mais complexo e talvez sintomático.
Fico aqui imaginando e conjeturando: de onde vem tal realismo blasé, tão aparentemente bem informado e tão magnanimamente inconsequente?
Virá talvez do (in)consciente coletivo ancestral legado por nossa História política, mais ou menos oficial? Com suas celebradas soluções de cúpula, às quais se seguiam sempre uma nova e precária normalização, sem se fazer maior caso das eventuais expectativas e demandas por mudança da esmagadora maioria da assistência popular, devidamente “bestializada”? Ou será que aquele velho economicismo vulgar, que tantas vítimas intelectuais nos legou – tanto à direita quanto à esquerda –, segue fazendo escola, com seu proverbial desprezo e incapacidade de entender as especificidades da política e suas instituições?  Seremos todos, afinal, uns mais outros menos talvez, mas igualmente presas de um mesmo cinismo endêmico, superficial e cíclico? Incapazes de qualquer aprendizado político e evolução democrática? Será, enfim, “que esta minha estúpida retórica terá que soar, terá que se ouvir, por mais zil anos”?
É possível. Mas a hora urge, a turba ruge, e não é momento para grandes elucubrações sobre causas e heranças do passado. Muito pelo contrário.
Cada vez mais me convenço de que chegamos a uma quadra radicalmente distinta e grave de nossa trajetória republicana e que, nesse caso, como disse outro grande compositor, “History will teach us nothing”.
Por isso, não vou entrar novamente no mérito da legalidade do processo em curso. Não tenho mais paciência para esse debate. Deixo aos juristas o que ainda pode restar do descasque do abacaxi.
Restrinjo meu argumento apenas à questão da legitimidade. E não a partir de uma perspectiva meramente normativa, como dizemos pomposamente na Academia. Mas sim nas suas implicações estratégicas básicas para o desenrolar futuro do jogo. Legitimidade é aqui entendida, basicamente, como conjunto de expectativas que os participantes podem nutrir com relação às possibilidades, aos limites e ao espírito que preside o funcionamento do sistema político do qual fazem parte, do que podem obter com ele e como agir nesse sentido. Muito mais concreto do que qualquer parâmetro ideal, teórico ou abstrato, é algo que se constrói única e exclusivamente através da experiência política e social efetiva – principalmente nas derrotas – e que, além de imprescindível ao funcionamento das instituições políticas – começando e terminando pelo próprio governo; qualquer governo! –, vai bem mais longe e fundo, envolvendo todo o tecido social, inclusive suas diversas "micropolíticas".
O sacrifício da legitimidade política democrática que com tanta ansiedade e descaso se está consumando neste país – e, diga-se de passagem, não apenas por significativa parcela de sua classe política – pode deixar sequelas muito mais amplas, profundas e duradouras do que supõe o vão pragmatismo daqueles que parecem dispostos a pagar qualquer preço para apaziguar suas angústias imediatas e debelar a crise a contento. Crise que, aliás, não pode de modo algum ser debitada unilateralmente nas costas e contas do governo, por mais infeliz que este possa ter sido, sem fazer referência, ao menos, às várias formas de sabotagem sistemática que vem perseguindo e desestabilizando o mesmo desde antes, até, de sua posse, há pouco mais de um ano.
Valer-se das regras do jogo, mesmo que das mais problemáticas ou controversas, inclusive, para alavancar seus projetos de poder e de interferência na realidade coletiva, é o comportamento que se espera de qualquer jogador político digno desse nome em uma democracia minimamente institucionalizada e competitiva. Seja ele da situação ou da oposição. Assim como a imparcialidade e a circunspecção de atores e árbitros institucionais é um ideal regulatório ao mesmo tempo essencial ao mesmo jogo e praticamente impossível de se efetivar, haja vista a condição humana parcial e finita, que compartilham tanto aqueles que são chamados a decidir quanto os que os observam e nutrem expectativas a respeito (ainda mais quando se vive sob o pan-óptico midiático e sua cansativa fábrica de celebridades efêmeras). E não faz a menor diferença se tais árbitros julguem pertencer a uma casta privilegiada de iluminados e inatingíveis.
Mas assim como sempre há custos e riscos envolvidos em toda e qualquer escolha – como, por exemplo, entre envolver-se ou se omitir – existe uma grande e decisiva diferença entre, de um lado, tentar vencer a qualquer custo, ou por quaisquer meios, e, de outro, controlar o próprio comportamento competitivo, restringindo-se aos marcos legais, ou morais, minimamente compartilhados pela maioria dos principais jogadores e seus assistentes. E não se trata apenas, de modo algum, de uma distinção de conteúdo ético, ou "cultural".
A vigência de tais controles e autocontroles, além de muitas vezes manter assim abertas as portas e os caminhos para eventuais soluções pacíficas de impasses e conflitos graves – salvaguardando reservas mesmo que mínimas, mas valiosas, de confiança e predisposição ao diálogo (que, no entanto, creio que já se encontram devidamente descartadas em nosso contexto atual) –, configura também, portanto, uma variável rigorosamente estratégica, e, como tal, eminentemente política, e que pode fazer diferença não tanto no que se refere exatamente à alternativa entre vencer ou perder.
Mas sim, muito mais, entre vencer apenas, ou vencer e também levar.

sexta-feira, 22 de abril de 2016

Um caleidoscópio chamado Prince

Em outra encarnação, no século passado, fui programador de rádio FM. Foi nessa outra vida que tomei contato pela primeira vez com a música inesgotável de Prince Rogers Nelson. Estávamos na discoteca da emissora, monitorando as rádios concorrentes, quando súbito me vi arrebatado por um som irresistível: uma mistura dançante e explosiva de batera, guitarra e teclados. Virei-me então para Mr. Alby, dublê de decano dos programadores e DJ nos bailes funk da periferia, meu mentor à época no aprendizado da arte da programação musical, e demandei: Uau! Que som é esse?! Impassível, o mestre sacou da bolsa um Lp e decretou com ar blasé (desprezando minha ignorância palmar): “Esse som? Ora, isso é Prince, meu caro”. A música chamava-se “1999”, faixa-título do primeiro álbum-duplo do sujeito, mas que por conta desses absurdos do mercado fonográfico nacional foi desmembrado inicialmente e lançado em dois discos, dos quais só consegui da gravadora então o primeiro (tempos depois adquiri o CD completo).



Daí para frente minha coleção, meu prazer e minha veneração pelo cara só aumentaram. Prince foi, disparado, um dos mais completos, prolíficos e criativos músicos pop de todos os tempos. No mesmo nível, e com a mesma versatilidade instrumental e talento para a composição, só me lembro, na sua praia e estilo, de Stevie Wonder. Sem brincadeira.
Obviamente influenciado por, entre outros, roqueiros como Little Richard e Jimi Hendrix, ou soul fathers como James Brown, Smokey Robinson, Marvin Gaye e Sly Stone, ele sempre  arrasou no palco, além de legar registrado um volume de produção simplesmente estúpido – de tão grande -, não deixando pedra sobre pedra em matéria de gêneros musicais. E sempre acompanhado de bandas afiadas, onde nunca faltou espaço para outros talentos, de ambos os sexos (e põe belos sexos nisso!).
Muito vai se falar ainda sobre sua morte prematura e sua vida, cheia de poses, mistérios e de indefectíveis jogadas de marketing.
Quanto a mim, em respeito à sua música, e em memória da minha velha e abandonada vocação de DJ, me despeço do Artista, sugerindo alguns clipes e uma discografia básica e favorita para quem ainda não teve o prazer de escutar com atenção (e dançar, é claro!):

- 1999 (1982);
- Purple Rain (1984);
- Parade (1986);
- Sign o’ the times (1987);
- Batman (trilha do filme, de 1989);
- Diamonds & pearls (1991);
- Come (1994);
- Chaos & disorder (1996);
- 3121 (2006).