sábado, 26 de dezembro de 2015

Ingratidão (às vésperas do Natal)

Talvez se não fossem tão míopes, nem andassem tão mal acompanhadas, e tão mal aconselhadas, as forças de oposição ao Governo Federal tivessem, na verdade, agradecido ao Supremo Tribunal Federal por suas recentes decisões com relação ao rito do processo de impeachment.
É certo que agora o mesmo se tornará mais lento, mais arriscado e muito mais trabalhoso para quem quiser cassar o mandato da presidente. E não foi à toa que o Planalto e seus aliados comemoraram as decisões relativas às regras para a formação da comissão especial da Câmara, que pode ou não recomendar a abertura do processo ao Plenário da Casa, e ao papel do Senado ainda nessa primeira fase de possível afastamento provisório da Chefa do Poder Executivo. Afinal, além de reverter a derrota inicial na eleição secreta para a comissão especial, e de aumentar o número de oportunidades para uma eventual sustação e arquivamento do pedido acolhido pela presidência da Câmara, a decisão do STF, em si, dá novo fôlego e mais tempo a Dilma (mesmo diante da avaliação dúbia de que teria sido estrategicamente melhor para ela suspender o recesso parlamentar e fazer o impeachment tramitar mais imediatamente). Tempo que ao longo desse primeiro ano se tornou um artigo tão escasso para o Governo quanto apoio e tranquilidade (e, também, consequentemente, maior consistência e eficácia).
Mas o que foi recebido como revés para a oposição, pode, no médio e longo prazo, se constituir para esta uma importante vantagem. Pois em caso de sucesso final na busca por seu objetivo – o impedimento de Dilma e a exclusão do PT do poder –, a decisão do Supremo certamente pode dar a tal resultado, que já seria suficientemente problemático em condições mais favoráveis que as atuais, ao menos uma legitimidade maior do que se poderia aspirar se tivessem sido mantidas (ou renovadas) as decisões suspeitas que, acreditaram alguns, tornariam o impeachment favas contadas. Até segunda ordem, graças à interpretação majoritária do STF, ninguém poderá dizer que no caso atual não se observou o rito jurídico que presidiu o mesmo tipo de processo no caso de Fernando Collor, nem que houve desrespeito a alguma das principais instâncias do sistema republicano, ou que manobras espúrias teriam sido decisivas para definir o rumo dos acontecimentos, conspurcando assim a por si só grave decisão de eventual deposição legal de uma presidente legitimamente eleita.
Ou seja: se o impeachment passar – atendendo, é claro, aos devidos requisitos legais – ele terá de ser creditado exclusivamente a suas variáveis políticas, quer dizer: relativas ao jogo partidário e às dinâmicas de interação entre o Executivo e o Legislativo, e ao contexto específico de tomada de sua decisão (o que, obviamente, também não exclui de modo algum a participação da tal da Sociedade Civil, o que quer que se entenda por "opinião pública", e o movimento das ruas). Variáveis tão essenciais e legítimas quanto a participação político-institucional do Supremo no funcionamento do nosso presidencialismo.
Sem dúvida que, mesmo após a intervenção da mais alta instância do Judiciário, não há garantia alguma de que esse processo possa se encerrar rapidamente e sem traumas, seja em que direção for, nem muito menos de que poderemos superar facilmente as sequelas institucionais que inevitavelmente serão deixadas por ele. Ainda mais com base no relativamente frágil pretexto jurídico alegado. E é claro que ainda há muito tempo disponível para todo o tipo de manobras, chicanas, bravatas e profecias apressadas, do gênero que vimos e ouvimos a torto e a direito em 2015.
Mas já que resolveu se jogar nessa aventura, e testar os limites das nossas instituições democráticas, a oposição agora, mesmo que aparentemente contrariada, pode tentar trilhar um caminho talvez mais longo, e talvez com mais obstáculos, mas certamente mais seguro e um pouco mais distante daquele abismo a que me referi aqui outro dia: o abismo da deslegitimação institucional e da instabilidade política recorrente.

E com essa nota um pouco menos pessimista, desejo a todos um Feliz Natal e um 2016 melhor do que o ano que se encerra – o que não deveria ser difícil –, mas, se possível, também superior ao que andam profetizando por aí para os dias que nos aguardam.

domingo, 13 de dezembro de 2015

Pedalando à beira do abismo

Há algo de profundamente assustador no modo ao mesmo tempo ansioso e otimista com que as forças de oposição parecem saborear cada dificuldade que se apresenta para o Governo Dilma Rousseff em seu esforço diário de sobrevivência.
É difícil entender de onde vem tamanho entusiasmo. Se se tratasse simplesmente de se contar com o possível apeamento de Dilma e do PT do poder, coisa que efetivamente poderemos assistir nos próximos meses, vá lá. Afinal, que são mais alguns meses de ansiedade e excitação para quem pode estar há mais de uma década na fila? (alguns então remoendo suas frustrações e seu ressentimento por conta da autêntica usurpação que julgam terem sofrido desde que – graças a seu "maldito eleitorado" – esses petistas arrogantes ousaram assumir o comando deste vasto e cada vez mais complicado engenho tropical).
Mas quais as perspectivas que, acreditam eles, se abririam com a consecução de tal objetivo básico, essencial e, aparentemente, autossuficiente? E o que imaginam pode ocorrer ao longo dos meses em que não somente estará sendo decidido o destino do atual mandato presidencial, mas também, sem nenhum exagero, o futuro mais e menos imediato do país?
Imaginemos que, de um jeito ou de outro, a comissão especial convocada para examinar a proposta de impeachment dos doutos juristas se instalará e proferirá seu veredito. Suponhamos que este último seja pela possibilidade de abertura do dito processo por meio de uma decisão amplamente majoritária do plenário da Câmara dos Deputados. E que tal votação se dê, talvez, na melhor (?!) das hipóteses, ainda em janeiro. E que uma vez aprovado o afastamento provisório da presidente, tenhamos pela frente ainda alguns outros meses até que o Senado profira a sua sentença definitiva. Só a título de exemplo, entre a abertura dos trabalhos para o julgamento político do presidente Fernando Collor, e sua deposição definitiva, foi-se embora boa parte do segundo semestre de 1992.
Ora, independentemente do possível – e, se chegarmos até esta etapa, praticamente certo – desfecho, perdoem-me a cândida pergunta: em que país pensam que estaremos vivendo? Como creem estará nossa sociedade e nossa economia?
E que apostas fazem em torno dos possíveis novos governantes e sua nova coalizão? Quem serão eles? Como governarão? Até quando?
Por outro lado, que expectativas têm acerca de como se comportarão não só os membros do atual governo, se efetivamente depostos, mas bem além deles, seu partido, seus aliados e demais setores da nossa sociedade? Como creem reagirão estes que mesmo insatisfeitos hoje com o comando da presidente em exercício se mostram firmes na defesa de seu mandato, talvez não confiem muito nos prováveis beneficiários de sua eventual deposição, nem apreciam as perspectivas que se abrem com sua chegada ao poder, nem, muito menos ainda, os métodos que vêm sendo utilizados para se produzir tal resultado?
E tentando enxergar ainda um pouco mais longe: como esperam obter aquiescência para suas eventuais vitórias eleitorais futuras, para o exercício de seus eventuais futuros governos?
Há quem possa imaginar ser possível uma deposição institucional e ao mesmo tempo cirúrgica e indolor de um presidente eleito no Brasil. Quase nunca é.
Ou que basta a mudança no leme do navio para se acertar as rotas da economia num novo equilíbrio virtuoso.
Negativo. Mal dá para o começo. E pode até complicar ainda mais o meio de campo (quem quiser que retome a história errática do Governo Itamar Franco para lembrar quanto tempo, quanta tentativa e erro foram precisos até se encontrar um rumo, com o Plano Real; só não esqueçam também de recuperar e comparar o contexto político da época e sua correlação de forças, com o momento atual; aqui cessam todas as semelhanças – e qualquer otimismo pretensamente consistente).
Tanto para uma quanto para outra solução, a política e a econômica, é preciso muito mais. Principalmente num contexto político já radicalizado e polarizado, em que as divisões partidárias assumem cada vez mais clara conotação social.
Pra começo de conversa, é preciso legalidade, legitimidade, estabilidade, e um mínimo de previsibilidade. Claro que há outros fatores importantes também, como alguma competência, perseverança, coragem e sorte (por vezes, muita sorte). Mas o problema mais grave com relação aos quatro primeiros requisitos é que, além de demandar tempo, para eles não basta iniciativa e mérito individual. Ou eles são produzidos coletivamente, pela interação contraditória, mas relativamente controlada, de todas as diferentes e conflitantes vontades – e é para isso que existem as famosas "instituições" – ou então,... babau.
Legalidade, legitimidade, estabilidade e previsibilidade não são, portanto, meras palavras bonitas. São pré-requisitos essenciais à vida social e à solução de seus muitos problemas, e de cuja necessidade, infelizmente, muitos só se dão conta quando efetivamente a perdem.
Certamente que o governo atual também tem sua significativa parcela de responsabilidade neste processo de erosão das aludidas pré-condições institucionais. Mas a tentativa de sua inviabilização a qualquer custo, desde o momento de posse, inclusive, não vem somente simplesmente paralisando-o e impedindo-o – de fato, se não ainda de “Direito” –, de contribuir com qualquer tentativa eficiente de superação das grandes dificuldades atuais. Pode igualmente estender a saída e a luz no fim desse túnel para muito longe de nossas vistas.
E seria uma trágica ironia se por conta de eventuais "pedaladas" mal dadas se produzisse uma tentativa afoita de concerto de algumas bicicletas defeituosas, somente para colocá-las freneticamente no rumo de uma autêntica corrida de obstáculos à beira do precipício.

segunda-feira, 7 de dezembro de 2015

Ser ou não ser? (Fora da zona de conforto)

Um dos sinais inequívocos de que alguém se encontra mesmo diante de uma crise autêntica é o fato de que não é possível mais permanecer e se sentir relativamente confortável, ou ao menos não tão confortável quanto antes. Muitas vezes o conforto em que alguém se mantém por um bom tempo só é efetivamente reconhecido no momento em que ele se perde (daí aquele clássico chavão do "eu era feliz e não sabia").
Com o agravamento das crises política e econômica atuais, muita gente certamente já talvez nem lembre o que é "conforto".
Mas há aqueles para quem, acredito, a hora da verdade está chegando somente agora.
Refiro-me, nesse caso, ao Partido do Movimento Democrático Brasileiro, nosso velho e conhecido PMDB.
Desde os tempos já míticos em que liderou a chamada "Transição Democrática", no começo da década de 1980, até seu apogeu na Assembleia Nacional Constituinte (1987-88) – e que marcou também, obviamente, o começo do declínio de sua preeminência política – o antigo partido de Ulysses veio se acostumando a desempenhar no jogo político nacional um papel decisivo, porém secundário: o de observador mais ou menos alinhado das grandes disputas entre PT e PSDB, mas também de cobiçado e quase inevitável aliado dos governos de uns ou outros, em função do tamanho de suas bancadas e de sua capilaridade e poder no sistema federativo.
Não por acaso, já lá se vão mais de vinte anos desde a última vez que o PMDB apresentou candidato próprio às eleições presidenciais (Orestes Quércia, que ficou em quarto lugar em 1994). De lá para cá o partido se acostumou a maximizar seus recursos nas demais eleições de modo a se tornar sempre indispensável – ou pelo menos impossível de se ignorar – por quem quer que governe o país.
Uma posição bastante confortável, e por uma série de razões: 1) primeiro, porque abrindo mão de disputar a presidência com candidato próprio, e se concentrando na manutenção e aprimoramento de sua máquina nacional, ficou muito mais fácil e confortável administrar e acomodar as suas diversas facções e lideranças regionais; ainda mais diante da perspectiva quase sempre renovada de adesão aos governos federais eleitos e participação de destaque na distribuição dos cargos e recursos da administração federal (uma vez conservada, claro, a aludida força numérica do partido no Congresso e em vários estados e municípios); 2) segundo, porque ao ser quase sempre parte importante do governo, mas não seu principal responsável – coisa que naturalmente cabe aos partidos dos presidentes – o PMDB também usufrui de seus eventuais bônus, sem ter de necessariamente arcar com seus ônus; quando o governo vai bem, fatura-se ao menos parte dos créditos (fora os benefícios já aferidos pelo controle de partes da máquina); quando ele vai mal, diluem-se os custos, com o foco da insatisfação se dirigindo predominantemente para os protagonistas. De fato, se nosso sistema é mesmo o tal "presidencialismo de coalizão", ninguém parece tê-lo praticado melhor que o partido do atual vice-presidente da República.
Com a presidente Dilma na berlinda do impeachment, porém, a coisa muda inteiramente de figura. Tal como irá suceder com todos os partidos e todas as forças políticas do país, o processo de radicalização por que estamos passando certamente vai agora atingir novos patamares de polarização e vai ser quase impossível se manter em cima do muro. Mas para o PMDB, por suas funções estratégicas tanto no Executivo quanto no Legislativo federais, o desafio é muito maior.
A primeira dificuldade do partido na conjuntura atual, portanto, será o da manutenção de sua pretensa unidade. Antes, na zona de conforto, era fácil lidar com dissidências e disputas internas. Agora serão outros quinhentos. Não só por conta das divergências naturais e projetos políticos conflitantes de seus líderes e grupos. Mas também porque a perspectiva de eventual volta ao proscênio, ainda mais nessa conjuntura crítica, vai tornar os riscos e os custos de transição – e de transação – muito mais elevados. Seja interna ou externamente ao partido.
Assim, escolher (re)assumir o comando – com o eventual impedimento da presidente (pressupondo, é claro, que ela venha a cair sozinha, e que não tenhamos eleições presidenciais antes de 2018) – é uma aposta tão tentadora quanto temerária para o PMDB. Por um lado, pode representar uma oportunidade histórica singular e rara de retomada real do poder para a sigla. Por outro, será o fim da era de participação relativamente fácil e confortável no governo de qualquer um dos rivais. Um caminho sem volta (pelo menos em médio prazo).
Já que, afinal, qual será a credibilidade do PMDB como grande parceiro de coalizão se agora voltar as costas ao governo do PT? Quem seriam os parceiros preferenciais de um novo governo tucano, ou mesmo de outras siglas menos prováveis?
É por essas e outras que, talvez, o grande dilema peemedebista também não possa mais se restringir a uma simples escolha de qual outro protagonista seguir, se o PT ou o PSDB, conforme os humores do eleitorado ou das pesquisas de opinião. Ator principal ou coadjuvante, mais ou menos heterogêneo, grande ou não tão grande, vai ser preciso encontrar um novo lugar para si na economia política partidária brasileira. E seja lá com que grau de conforto.