São louváveis, embora
altamente discutíveis, as tentativas de recuperação da legitimidade e de alguma
estabilidade política efetiva para o país com base numa negociação em torno da
recondução de Dilma ao governo, em troca de um compromisso seu em torno da
convocação de um plebiscito sobre novas eleições presidenciais. E diante do
quadro lastimável proporcionado cotidianamente pelo governo interino e suas
bases de sustentação – dentro e fora do Congresso Nacional –, não deixa mesmo
de ser atraente também a perspectiva de, pelo menos, podermos assim nos livrar
logo dos usurpadores da hora.
Também não se trata
propriamente de alguma novidade histórica. Já se tentou antes resolver grandes
crises e impasses políticos com soluções extraconstitucionais e extemporâneas.
E às vezes até se obteve algum alívio ou trégua momentânea.
Parte-se neste caso, porém,
de uma premissa correta – a de que qualquer tentativa de relegitimação do
regime passa necessariamente pela recondução ao poder de quem fora
legitimamente eleita para isso, não havendo razões jurídicas suficientes que
justifiquem seu impedimento – para se propor um arranjo que embora possa
viabilizar provisoriamente a realização
concreta de tal premissa (se um número suficiente de senadores puder ser assim
convencido a votar contra o impeachment), mas que acaba por deslegitimar
a própria ideia original, além de, em seguida, inviabilizá-la: já que a condição
política sine qua non para o retorno de Dilma seria justamente seu
compromisso com uma intervenção institucional radical que implica simplesmente
a abdicação do restante de seu mandato legitimamente conquistado nas urnas de
2014. Não importando quem será, afinal, o beneficiário maior de uma eventual
antecipação das eleições presidenciais.
Volta-se assim ao motor político inicial da crise e seu caráter intrínseco e inescapavelmente golpista
desde a origem: parafraseando um famoso especialista em golpes de outrora,
Dilma, ou qualquer outra liderança petista, não podia ter sido (re)eleita.
Eleita, não poderia ter tomado posse. Empossada, teria de ser destituída.
Seja qual for o pretexto
para isso, pedalada ou outro casuísmo qualquer.
E agora parece que só poderá
ser eventualmente reconduzida ao seu lugar de direito se o for para aí não
permanecer. Cobrindo com um pouco de verniz legal o golpe já dado e consumado
neste país. Certamente que já seria algo mais do que pode aspirar em matéria de
legitimidade o governo interino do usurpador. Mas ainda assim é muito pouco.
E nada disso poderá deter
a continuidade do processo do golpe, que é mais amplo e mais profundo.
Como já disse
anteriormente, o ponto de não retorno já foi ultrapassado há muito.
Isto se consumou quando,
por assim dizer, importantes setores das "Sociedades Civil e Política"
brasileiras optaram, mais uma vez, por sacrificar a democracia e o Estado de
Direito em prol de uma solução imediata e imediatista tanto para suas aflições,
interesses e dogmatismos econômicos quanto para suas ambições políticas (novamente
frustradas pela via institucional; ou seja: duvidosamente viabilizáveis por meio do voto popular).
Os mais ou menos precários
ou abrangentes consensos que algum dia podem ter existido neste país em torno,
acima de tudo, da inviolabilidade da ordem constitucional democrática, mas também
da necessidade de se equilibrar responsabilidade fiscal com políticas de
crescimento e redistribuição de renda, foram perdidos.
E o que não foi
comprometido mais diretamente pelo golpe, já vem de muito sendo solapado pelas
ondas de moralismo hipócrita e inconsequente, acirradas pelo denuncismo
irresponsável.
Como disse há algum
tempo, a caixa de Pandora foi escancarada, não fecha tão cedo, e ninguém sabe o
que ainda pode sair dali, de par com a exposição pública das vísceras do velhíssimo
submundo da traficância público/privada, onde durante séculos foram gestadas
tantas "respeitáveis" fortunas, e em grande medida mantida e
preservada a distância abissal que separa as nossas "pragmáticas"
elites dirigentes das numerosas classes mais desfavorecidas e desprezadas.
Convenientemente relegadas pela "ordem natural das coisas", mas
imperdoavelmente empoderadas via voto (e outros canais) ao longo do regime
balizado pela Constituição de 1988 (A Nova Defunta).
Assim, a espinha dorsal
do sistema político e partidário, que com todos os seus muitos defeitos não
obstante foi responsável durante mais de três décadas pelos maiores avanços
sociais e institucionais da nossa trajetória republicana, está destruída. E o
que resta em matéria de capital político-partidário minimamente digno desse
nome, embora dia a dia se mostre cada vez mais precioso – justamente nesta hora
terrível de colapso institucional –, não parece ser capaz de deter as marés
montantes da reprivatização deslavada do público, da reação e do golpismo.
Apostas em soluções
extraordinárias são compreensíveis, mas não vão nos valer muito agora.
O único começo de saída
para salvar o que resta do regime, por mais improvável que seja, seria o fim
definitivo dessa farsa com o arquivamento do processo do impeachment, a
recondução de Dilma ao poder sem condicionantes, e a imperativa renúncia de
Michel Temer à vice-presidência (já que com seu comportamento desleal torna-se
inviável a sua permanência no cargo; nem como vice decorativo).
Qualquer alternativa, ou
saída excepcional, só poderá servir como paliativo ou adiamento precário e
provisório da fatura que terá de ser paga. De um modo ou de outro. Agora, ou
num futuro mais ou menos imediato.
Podem até ser tal
plebiscito e a antecipação das eleições, ou coisa parecida, muito mais, ou
alternativa melhor do que o disponível hoje, com a perspectiva de continuidade
da “interinidade”. Não duvido. E, dependendo das circunstâncias, posso até, sem
maiores convicções, apoiar.
Mas nada que justifique qualquer ilusão.