domingo, 10 de julho de 2016

A "normalidade", o processo e a fatura (ou, hora de mudar a decoração)

São louváveis, embora altamente discutíveis, as tentativas de recuperação da legitimidade e de alguma estabilidade política efetiva para o país com base numa negociação em torno da recondução de Dilma ao governo, em troca de um compromisso seu em torno da convocação de um plebiscito sobre novas eleições presidenciais. E diante do quadro lastimável proporcionado cotidianamente pelo governo interino e suas bases de sustentação – dentro e fora do Congresso Nacional –, não deixa mesmo de ser atraente também a perspectiva de, pelo menos, podermos assim nos livrar logo dos usurpadores da hora.
Também não se trata propriamente de alguma novidade histórica. Já se tentou antes resolver grandes crises e impasses políticos com soluções extraconstitucionais e extemporâneas. E às vezes até se obteve algum alívio ou trégua momentânea.
Parte-se neste caso, porém, de uma premissa correta – a de que qualquer tentativa de relegitimação do regime passa necessariamente pela recondução ao poder de quem fora legitimamente eleita para isso, não havendo razões jurídicas suficientes que justifiquem seu impedimento – para se propor um arranjo que embora possa viabilizar provisoriamente a realização concreta de tal premissa (se um número suficiente de senadores puder ser assim convencido a votar contra o impeachment), mas que acaba por deslegitimar a própria ideia original, além de, em seguida, inviabilizá-la: já que a condição política sine qua non para o retorno de Dilma seria justamente seu compromisso com uma intervenção institucional radical que implica simplesmente a abdicação do restante de seu mandato legitimamente conquistado nas urnas de 2014. Não importando quem será, afinal, o beneficiário maior de uma eventual antecipação das eleições presidenciais.
Volta-se assim ao motor político inicial da crise e seu caráter intrínseco e inescapavelmente golpista desde a origem: parafraseando um famoso especialista em golpes de outrora, Dilma, ou qualquer outra liderança petista, não podia ter sido (re)eleita. Eleita, não poderia ter tomado posse. Empossada, teria de ser destituída.
Seja qual for o pretexto para isso, pedalada ou outro casuísmo qualquer.
E agora parece que só poderá ser eventualmente reconduzida ao seu lugar de direito se o for para aí não permanecer. Cobrindo com um pouco de verniz legal o golpe já dado e consumado neste país. Certamente que já seria algo mais do que pode aspirar em matéria de legitimidade o governo interino do usurpador. Mas ainda assim é muito pouco.
E nada disso poderá deter a continuidade do processo do golpe, que é mais amplo e mais profundo.
Como já disse anteriormente, o ponto de não retorno já foi ultrapassado há muito.
Isto se consumou quando, por assim dizer, importantes setores das "Sociedades Civil e Política" brasileiras optaram, mais uma vez, por sacrificar a democracia e o Estado de Direito em prol de uma solução imediata e imediatista tanto para suas aflições, interesses e dogmatismos econômicos quanto para suas ambições políticas (novamente frustradas pela via institucional; ou seja: duvidosamente viabilizáveis por meio do voto popular).
Os mais ou menos precários ou abrangentes consensos que algum dia podem ter existido neste país em torno, acima de tudo, da inviolabilidade da ordem constitucional democrática, mas também da necessidade de se equilibrar responsabilidade fiscal com políticas de crescimento e redistribuição de renda, foram perdidos.
E o que não foi comprometido mais diretamente pelo golpe, já vem de muito sendo solapado pelas ondas de moralismo hipócrita e inconsequente, acirradas pelo denuncismo irresponsável.
Como disse há algum tempo, a caixa de Pandora foi escancarada, não fecha tão cedo, e ninguém sabe o que ainda pode sair dali, de par com a exposição pública das vísceras do velhíssimo submundo da traficância público/privada, onde durante séculos foram gestadas tantas "respeitáveis" fortunas, e em grande medida mantida e preservada a distância abissal que separa as nossas "pragmáticas" elites dirigentes das numerosas classes mais desfavorecidas e desprezadas. Convenientemente relegadas pela "ordem natural das coisas", mas imperdoavelmente empoderadas via voto (e outros canais) ao longo do regime balizado pela Constituição de 1988 (A Nova Defunta).
Assim, a espinha dorsal do sistema político e partidário, que com todos os seus muitos defeitos não obstante foi responsável durante mais de três décadas pelos maiores avanços sociais e institucionais da nossa trajetória republicana, está destruída. E o que resta em matéria de capital político-partidário minimamente digno desse nome, embora dia a dia se mostre cada vez mais precioso – justamente nesta hora terrível de colapso institucional –, não parece ser capaz de deter as marés montantes da reprivatização deslavada do público, da reação e do golpismo.  
Apostas em soluções extraordinárias são compreensíveis, mas não vão nos valer muito agora.
O único começo de saída para salvar o que resta do regime, por mais improvável que seja, seria o fim definitivo dessa farsa com o arquivamento do processo do impeachment, a recondução de Dilma ao poder sem condicionantes, e a imperativa renúncia de Michel Temer à vice-presidência (já que com seu comportamento desleal torna-se inviável a sua permanência no cargo; nem como vice decorativo).
Qualquer alternativa, ou saída excepcional, só poderá servir como paliativo ou adiamento precário e provisório da fatura que terá de ser paga. De um modo ou de outro. Agora, ou num futuro mais ou menos imediato.
Podem até ser tal plebiscito e a antecipação das eleições, ou coisa parecida, muito mais, ou alternativa melhor do que o disponível hoje, com a perspectiva de continuidade da “interinidade”. Não duvido. E, dependendo das circunstâncias, posso até, sem maiores convicções, apoiar.
Mas nada que justifique qualquer ilusão.