quarta-feira, 27 de abril de 2016

Realismo chinfrim e legitimidade democrática (ou, “E eu que me achava cínico...”)

Só tem uma coisa nessa crise que me espanta mais do que a tranquilidade com que alguns especulam sobre a montagem de um eventual governo Michel Temer – como se houvesse aí qualquer perspectiva política consistente de recuperação da governabilidade, melhoria da situação e enfrentamento da crise econômica, num prazo minimamente razoável: trata-se da naturalidade com que outras pessoas, inclusive algumas que até já se colocam na oposição a um futuro governo do atual vice, se mostram, no entanto, perfeitamente dispostas a abrir mão de qualquer resquício de legitimidade democrática, aceitando o atual processo de impeachment como uma fatalidade, ou mal necessário. Já que, segundo eles – e aí muitas vezes completam com um muxoxo, ou dão de ombros – "o governo Dilma já acabou mesmo...".
No primeiro caso, pode se tratar pura e simplesmente de autoengano, ou, como se diz, wishful thinking. Mas o segundo me parece mais complexo e talvez sintomático.
Fico aqui imaginando e conjeturando: de onde vem tal realismo blasé, tão aparentemente bem informado e tão magnanimamente inconsequente?
Virá talvez do (in)consciente coletivo ancestral legado por nossa História política, mais ou menos oficial? Com suas celebradas soluções de cúpula, às quais se seguiam sempre uma nova e precária normalização, sem se fazer maior caso das eventuais expectativas e demandas por mudança da esmagadora maioria da assistência popular, devidamente “bestializada”? Ou será que aquele velho economicismo vulgar, que tantas vítimas intelectuais nos legou – tanto à direita quanto à esquerda –, segue fazendo escola, com seu proverbial desprezo e incapacidade de entender as especificidades da política e suas instituições?  Seremos todos, afinal, uns mais outros menos talvez, mas igualmente presas de um mesmo cinismo endêmico, superficial e cíclico? Incapazes de qualquer aprendizado político e evolução democrática? Será, enfim, “que esta minha estúpida retórica terá que soar, terá que se ouvir, por mais zil anos”?
É possível. Mas a hora urge, a turba ruge, e não é momento para grandes elucubrações sobre causas e heranças do passado. Muito pelo contrário.
Cada vez mais me convenço de que chegamos a uma quadra radicalmente distinta e grave de nossa trajetória republicana e que, nesse caso, como disse outro grande compositor, “History will teach us nothing”.
Por isso, não vou entrar novamente no mérito da legalidade do processo em curso. Não tenho mais paciência para esse debate. Deixo aos juristas o que ainda pode restar do descasque do abacaxi.
Restrinjo meu argumento apenas à questão da legitimidade. E não a partir de uma perspectiva meramente normativa, como dizemos pomposamente na Academia. Mas sim nas suas implicações estratégicas básicas para o desenrolar futuro do jogo. Legitimidade é aqui entendida, basicamente, como conjunto de expectativas que os participantes podem nutrir com relação às possibilidades, aos limites e ao espírito que preside o funcionamento do sistema político do qual fazem parte, do que podem obter com ele e como agir nesse sentido. Muito mais concreto do que qualquer parâmetro ideal, teórico ou abstrato, é algo que se constrói única e exclusivamente através da experiência política e social efetiva – principalmente nas derrotas – e que, além de imprescindível ao funcionamento das instituições políticas – começando e terminando pelo próprio governo; qualquer governo! –, vai bem mais longe e fundo, envolvendo todo o tecido social, inclusive suas diversas "micropolíticas".
O sacrifício da legitimidade política democrática que com tanta ansiedade e descaso se está consumando neste país – e, diga-se de passagem, não apenas por significativa parcela de sua classe política – pode deixar sequelas muito mais amplas, profundas e duradouras do que supõe o vão pragmatismo daqueles que parecem dispostos a pagar qualquer preço para apaziguar suas angústias imediatas e debelar a crise a contento. Crise que, aliás, não pode de modo algum ser debitada unilateralmente nas costas e contas do governo, por mais infeliz que este possa ter sido, sem fazer referência, ao menos, às várias formas de sabotagem sistemática que vem perseguindo e desestabilizando o mesmo desde antes, até, de sua posse, há pouco mais de um ano.
Valer-se das regras do jogo, mesmo que das mais problemáticas ou controversas, inclusive, para alavancar seus projetos de poder e de interferência na realidade coletiva, é o comportamento que se espera de qualquer jogador político digno desse nome em uma democracia minimamente institucionalizada e competitiva. Seja ele da situação ou da oposição. Assim como a imparcialidade e a circunspecção de atores e árbitros institucionais é um ideal regulatório ao mesmo tempo essencial ao mesmo jogo e praticamente impossível de se efetivar, haja vista a condição humana parcial e finita, que compartilham tanto aqueles que são chamados a decidir quanto os que os observam e nutrem expectativas a respeito (ainda mais quando se vive sob o pan-óptico midiático e sua cansativa fábrica de celebridades efêmeras). E não faz a menor diferença se tais árbitros julguem pertencer a uma casta privilegiada de iluminados e inatingíveis.
Mas assim como sempre há custos e riscos envolvidos em toda e qualquer escolha – como, por exemplo, entre envolver-se ou se omitir – existe uma grande e decisiva diferença entre, de um lado, tentar vencer a qualquer custo, ou por quaisquer meios, e, de outro, controlar o próprio comportamento competitivo, restringindo-se aos marcos legais, ou morais, minimamente compartilhados pela maioria dos principais jogadores e seus assistentes. E não se trata apenas, de modo algum, de uma distinção de conteúdo ético, ou "cultural".
A vigência de tais controles e autocontroles, além de muitas vezes manter assim abertas as portas e os caminhos para eventuais soluções pacíficas de impasses e conflitos graves – salvaguardando reservas mesmo que mínimas, mas valiosas, de confiança e predisposição ao diálogo (que, no entanto, creio que já se encontram devidamente descartadas em nosso contexto atual) –, configura também, portanto, uma variável rigorosamente estratégica, e, como tal, eminentemente política, e que pode fazer diferença não tanto no que se refere exatamente à alternativa entre vencer ou perder.
Mas sim, muito mais, entre vencer apenas, ou vencer e também levar.

sexta-feira, 22 de abril de 2016

Um caleidoscópio chamado Prince

Em outra encarnação, no século passado, fui programador de rádio FM. Foi nessa outra vida que tomei contato pela primeira vez com a música inesgotável de Prince Rogers Nelson. Estávamos na discoteca da emissora, monitorando as rádios concorrentes, quando súbito me vi arrebatado por um som irresistível: uma mistura dançante e explosiva de batera, guitarra e teclados. Virei-me então para Mr. Alby, dublê de decano dos programadores e DJ nos bailes funk da periferia, meu mentor à época no aprendizado da arte da programação musical, e demandei: Uau! Que som é esse?! Impassível, o mestre sacou da bolsa um Lp e decretou com ar blasé (desprezando minha ignorância palmar): “Esse som? Ora, isso é Prince, meu caro”. A música chamava-se “1999”, faixa-título do primeiro álbum-duplo do sujeito, mas que por conta desses absurdos do mercado fonográfico nacional foi desmembrado inicialmente e lançado em dois discos, dos quais só consegui da gravadora então o primeiro (tempos depois adquiri o CD completo).



Daí para frente minha coleção, meu prazer e minha veneração pelo cara só aumentaram. Prince foi, disparado, um dos mais completos, prolíficos e criativos músicos pop de todos os tempos. No mesmo nível, e com a mesma versatilidade instrumental e talento para a composição, só me lembro, na sua praia e estilo, de Stevie Wonder. Sem brincadeira.
Obviamente influenciado por, entre outros, roqueiros como Little Richard e Jimi Hendrix, ou soul fathers como James Brown, Smokey Robinson, Marvin Gaye e Sly Stone, ele sempre  arrasou no palco, além de legar registrado um volume de produção simplesmente estúpido – de tão grande -, não deixando pedra sobre pedra em matéria de gêneros musicais. E sempre acompanhado de bandas afiadas, onde nunca faltou espaço para outros talentos, de ambos os sexos (e põe belos sexos nisso!).
Muito vai se falar ainda sobre sua morte prematura e sua vida, cheia de poses, mistérios e de indefectíveis jogadas de marketing.
Quanto a mim, em respeito à sua música, e em memória da minha velha e abandonada vocação de DJ, me despeço do Artista, sugerindo alguns clipes e uma discografia básica e favorita para quem ainda não teve o prazer de escutar com atenção (e dançar, é claro!):

- 1999 (1982);
- Purple Rain (1984);
- Parade (1986);
- Sign o’ the times (1987);
- Batman (trilha do filme, de 1989);
- Diamonds & pearls (1991);
- Come (1994);
- Chaos & disorder (1996);
- 3121 (2006).