Só tem uma
coisa nessa crise que me espanta mais do que a tranquilidade com que alguns
especulam sobre a montagem de um eventual governo Michel Temer – como se
houvesse aí qualquer perspectiva política consistente de recuperação da
governabilidade, melhoria da situação e enfrentamento da crise econômica, num
prazo minimamente razoável: trata-se da naturalidade com que outras pessoas,
inclusive algumas que até já se colocam na oposição a um futuro governo do
atual vice, se mostram, no entanto, perfeitamente dispostas a abrir mão de
qualquer resquício de legitimidade democrática, aceitando o atual processo de impeachment
como uma fatalidade, ou mal necessário. Já que, segundo eles – e aí muitas
vezes completam com um muxoxo, ou dão de ombros – "o governo Dilma já
acabou mesmo...".
No primeiro
caso, pode se tratar pura e simplesmente de autoengano, ou, como se diz, wishful
thinking. Mas o segundo me parece mais complexo e talvez sintomático.
Fico aqui
imaginando e conjeturando: de onde vem tal realismo blasé, tão aparentemente
bem informado e tão magnanimamente inconsequente?
Virá talvez do
(in)consciente coletivo ancestral legado por nossa História política, mais ou
menos oficial? Com suas celebradas soluções de cúpula, às quais se seguiam
sempre uma nova e precária normalização, sem se fazer maior caso das eventuais
expectativas e demandas por mudança da esmagadora maioria da assistência
popular, devidamente “bestializada”? Ou será que aquele velho economicismo
vulgar, que tantas vítimas intelectuais nos legou – tanto à direita quanto à
esquerda –, segue fazendo escola, com seu proverbial desprezo e incapacidade de
entender as especificidades da política e suas instituições? Seremos todos, afinal, uns mais outros menos
talvez, mas igualmente presas de um mesmo cinismo endêmico, superficial e
cíclico? Incapazes de qualquer aprendizado político e evolução democrática?
Será, enfim, “que esta minha estúpida retórica terá que soar, terá que se
ouvir, por mais zil anos”?
É possível.
Mas a hora urge, a turba ruge, e não é momento para grandes elucubrações sobre
causas e heranças do passado. Muito pelo contrário.
Cada vez mais
me convenço de que chegamos a uma quadra radicalmente distinta e grave de nossa
trajetória republicana e que, nesse caso, como disse outro grande compositor, “History
will teach us nothing”.
Por isso, não
vou entrar novamente no mérito da legalidade do processo em curso. Não tenho
mais paciência para esse debate. Deixo aos juristas o que ainda pode restar do
descasque do abacaxi.
Restrinjo meu
argumento apenas à questão da legitimidade. E não a partir de uma perspectiva
meramente normativa, como dizemos pomposamente na Academia. Mas sim nas suas
implicações estratégicas básicas para o desenrolar futuro do jogo. Legitimidade
é aqui entendida, basicamente, como conjunto de expectativas que os
participantes podem nutrir com relação às possibilidades, aos limites e ao
espírito que preside o funcionamento do sistema político do qual fazem parte,
do que podem obter com ele e como agir nesse sentido. Muito mais concreto do
que qualquer parâmetro ideal, teórico ou abstrato, é algo que se constrói única
e exclusivamente através da experiência política e social efetiva –
principalmente nas derrotas – e que, além de imprescindível ao funcionamento
das instituições políticas – começando e terminando pelo próprio governo;
qualquer governo! –, vai bem mais longe e fundo, envolvendo todo o tecido
social, inclusive suas diversas "micropolíticas".
O sacrifício
da legitimidade política democrática que com tanta ansiedade e descaso se está
consumando neste país – e, diga-se de passagem, não apenas por significativa
parcela de sua classe política – pode deixar sequelas muito mais amplas,
profundas e duradouras do que supõe o vão pragmatismo daqueles que parecem dispostos
a pagar qualquer preço para apaziguar suas angústias imediatas e debelar a
crise a contento. Crise que, aliás, não pode de modo algum ser debitada
unilateralmente nas costas e contas do governo, por mais infeliz que este possa
ter sido, sem fazer referência, ao menos, às várias formas de sabotagem
sistemática que vem perseguindo e desestabilizando o mesmo desde antes, até, de
sua posse, há pouco mais de um ano.
Valer-se das
regras do jogo, mesmo que das mais problemáticas ou controversas, inclusive,
para alavancar seus projetos de poder e de interferência na realidade coletiva,
é o comportamento que se espera de qualquer jogador político digno desse nome
em uma democracia minimamente institucionalizada e competitiva. Seja ele da
situação ou da oposição. Assim como a imparcialidade e a circunspecção de
atores e árbitros institucionais é um ideal regulatório ao mesmo tempo
essencial ao mesmo jogo e praticamente impossível de se efetivar, haja vista a
condição humana parcial e finita, que compartilham tanto aqueles que são
chamados a decidir quanto os que os observam e nutrem expectativas a respeito
(ainda mais quando se vive sob o pan-óptico midiático e sua cansativa fábrica
de celebridades efêmeras). E não faz a menor diferença se tais árbitros julguem
pertencer a uma casta privilegiada de iluminados e inatingíveis.
Mas assim como
sempre há custos e riscos envolvidos em toda e qualquer escolha – como, por
exemplo, entre envolver-se ou se omitir – existe uma grande e decisiva
diferença entre, de um lado, tentar vencer a qualquer custo, ou por quaisquer
meios, e, de outro, controlar o próprio comportamento competitivo,
restringindo-se aos marcos legais, ou morais, minimamente compartilhados pela
maioria dos principais jogadores e seus assistentes. E não se trata apenas, de
modo algum, de uma distinção de conteúdo ético, ou "cultural".
A vigência de
tais controles e autocontroles, além de muitas vezes manter assim abertas as
portas e os caminhos para eventuais soluções pacíficas de impasses e conflitos
graves – salvaguardando reservas mesmo que mínimas, mas valiosas, de confiança
e predisposição ao diálogo (que, no entanto, creio que já se encontram
devidamente descartadas em nosso contexto atual) –, configura também, portanto,
uma variável rigorosamente estratégica, e, como tal, eminentemente política, e
que pode fazer diferença não tanto no que se refere exatamente à alternativa
entre vencer ou perder.
Mas sim, muito mais, entre vencer apenas, ou vencer e
também levar.