sábado, 21 de março de 2015

Fins e meios (ou, Sobre panelas e canja de galinha)

Não vou entrar no mérito das razões – algumas delas, de fato, possivelmente boas – para a mobilização popular de oposição ao Governo Dilma, ocorrida domingo passado em várias capitais. De qualquer modo, antes de ir ao ponto que realmente me interessa, acho importante que todos os setores favoráveis à presidente e/ou ao seu partido levem a sério, mesmo que obviamente discordando, tanto a magnitude da participação quanto o que pode restar de conteúdo substantivo na agenda dos protestos (ao menos em temas como os do combate à corrupção, ou dos problemas do contexto econômico, entre outros). Não obviamente para vestir alguma carapuça indevida. Mas sim para não perder o foco na agenda mais ampla de potenciais interesses populares com alguma dose de realidade, e que podem, também, alimentar ou moderar a energia das ruas (matéria em que certamente o desempenho governamental poderia ser corrigido, incrementado, aperfeiçoado ou melhor divulgado).
Vou me ater somente a uma tentativa de interpretação da viabilidade dos objetivos políticos possíveis da manifestação, sintetizados no mote principal: “Fora Dilma!” (para além dos elementos claramente irracionais e carentes de objetividade que este tipo de mobilização inevitavelmente também sempre incorpora). Ou seja: da concretização da meta alardeada de modo mais conspícuo pelos manifestantes e que se resume ao desejo de afastar do poder a presidente recém-reeleita. 
Também não pretendo perscrutar aqui quais os resultados últimos concretos que se espera obter com tal intervenção radical em nosso status quo. Sejam eles de natureza política e partidária mais ou menos imediata – como a transferência das prerrogativas presidenciais de acordo com a linha sucessória constitucional e seus possíveis desdobramentos, de curto, médio ou longo prazos – ou os de caráter supostamente mais substantivo, quer dizer, os que implicariam alguma alteração efetiva no cotidiano dos brasileiros por força de tal mudança drástica de poder.
Deixo de bom grado essa tarefa aos seus proponentes e entusiastas.
Gostaria apenas de enfatizar que, como todos nós sabemos, tal operação só pode ser efetivada de três modos: 1) ou a presidente renuncia (como Jânio Quadros, em 1961); 2) ou é impedida de governar por meios constitucionais, ou seja: por um processo completo de impeachment (tal como aconteceu com Fernando Collor, em 1992); 3) ou seu governo é interrompido pela força: como antes dela foram os de Deodoro (em 1891), Washington Luís (em 1930), Getulio Vargas (em 1945 e em 1954), Café Filho e Carlos Luz (impedidos, manu militari, em 1955), e João Goulart (em 1964), (e vamos parar por aqui porque já não sei se estou esquecendo alguém).
Não creio que precise lembrar que somente as duas primeiras formas são contempladas pela Constituição em vigor. E ambas apresentam alguns inconvenientes óbvios para os interessados. A primeira por ser bastante improvável, e a segunda por necessitar de uma série de requisitos e trâmites legais, formais, processuais e, finalmente, políticos, que além de não serem simples, demandam certo tempo e pré-condições. Para se ter uma ideia de quão excepcional é, na nossa História Republicana, a aplicação regular do instituto do impeachment – tal como procurei sugerir em artigo publicado recentemente em O Globo (“A exceção, não a regra”, 12/03/2015, http://oglobo.globo.com/brasil/artigo-excecao-nao-regra-pelas-tabelas-15570986 ) –, basta lembrar que embora tentado algumas vezes contra presidentes da República Velha (1889-1930), e ainda menos no período democrático de 1945-1964 – não por acaso, contra Vargas, em 1954, e contra Jango, dez fatídicos anos depois –, seus proponentes nunca lograram êxito imediato (pela via constitucional). Dado que, como disse, Carlos Luz e Café Filho foram impedidos em 1955 no contexto excepcional da chamada crise do 11 de novembro daquele ano, o impeachment de Collor, há pouco mais de duas décadas – de acordo com a Constituição e sem envolvimento militar –, é realmente a exceção à regra. 
Mas talvez seja justamente a relativa proximidade temporal entre nós e aquela conjuntura – somada talvez a certo desconhecimento de nossa História anterior – o que pode estar levando muita gente a achar que tal processo seja algo simples e sem maiores riscos. Riscos que, aliás, podem ser maiores ou menores tanto em caso de sucesso quanto de fracasso de uma eventual tentativa a esse respeito, por parte do Congresso Nacional (que, como sabemos, é quem tem a prerrogativa de julgar e decidir nesses casos).
Seja como for, e ainda mais quando se houve lideranças oposicionistas falar em “sangrar” a presidente, pode ser que o apoio ao dito “Fora Dilma!” se trate justamente de uma tentativa não somente de pressão pela viabilização legal e política de um processo de impeachment, como também, alternativamente, de indução a um desgaste e uma desestabilização do governo de modos a que em curto ou médio prazo não venha a caber à presidente outro recurso que não a renúncia. 
Esta estratégia, porém, além de ser uma franca e temerária aposta no famoso “quanto pior, melhor” (da qual depende), também não seria propriamente inédita (e não custa lembrar que na única vez que tal expediente parecia atingir seu objetivo, o tiro – e foi mesmo um tiro célebre – saiu, por assim dizer, pela culatra).
Cabe, portanto, aos incentivadores do movimento ora em curso, especialmente aqueles interessados e/ou comprometidos com a manutenção das atuais instituições democráticas, refletir um pouco sobre seus fins e meios. 
Afinal, nada garante que o movimento atual de indignação, desconfiança e deslegitimação, se efetivamente encorpado e consequente, vá necessariamente se resumir a consumir as vítimas sacrificiais da hora, ou conter-se às imediações do Palácio do Planalto. Movimentos políticos arrebatados e plenos de ânimo, que se arriscam nos limites da norma – mais ou menos assim como avassaladoras aventuras extraconjugais – podem começar de formas bem conhecidas. Gerando até grandes expectativas. Mas seu desfecho é sempre imprevisível.
Quanto à terceira e mais tradicional forma de afastamento de presidentes no Brasil republicano, bem...
(Vou até a cozinha usar minhas panelas para preparar uma boa canja de galinha, como manda o dito popular)

segunda-feira, 9 de março de 2015

Back to the Musical Box

Não. Não assisti ao discurso de Dilma, nem às reações mais ruidosas ao mesmo.
Tinha coisa muito melhor para fazer então: deliciar-me com o único e imperdível show de Steve Hackett no Rio.
Para quem não sabe, ou não se lembra, Hackett era a guitarra solo do Genesis na fase áurea do grupo inglês, um quinto de uma das mais felizes e criativas reuniões do prolífico estilo conhecido nos anos 1970 como rock clássico, progressivo ou sinfônico. Quem teve o privilégio de assistir e ouvir o show que deu ontem com sua nova e afiadíssima banda, com uma seleção primorosa de grandes criações do passado, pode entender porque aquele tipo de música tinha tal alcunha. Com uma parafernália de grandes ideias musicais e arranjos altamente sofisticados, mas perfeitamente fluentes e arrebatadores, o revival do Genesis me deu grande prazer, algumas certezas e uma profunda tristeza.
A primeira é que Hackett é mesmo um músico de primeira, que sabe usar sua técnica refinada em benefício da forma e não do efeito. Não sei bem até hoje porque saiu da banda, depois de participar da gravação de discos antológicos como Nursery crime, Foxtrot, Selling England by the pound, e The lamb lies down on Broadway, entre outros, mas das duas uma: ou não havia mesmo lugar para ele na guinada pop que a banda daria em seguida à sua saída, ou em função desta a própria banda teve reduzida sua capacidade, digamos, sinfônica.
Mas não importa. Porque em segundo lugar, o atual show de Hackett e seus ótimos acompanhantes é um belo tributo ao talento dos outros quatro parceiros originais. A música que ele fez nos 70 com Mike Rutherford, Phil Collins, Peter Gabriel e Tony Banks é simplesmente mágica.
Por isso mesmo que embora todos no time atual deem conta do recado, num show praticamente perfeito, não posso deixar de mencionar o quanto senti saudades ontem do velho Peter Gabriel. O vocalista atual de Hackett, Nad Sylvan, bem que se esforça e faz a sua parte. Mas para não ser engolido por músicos tão virtuosos o cantor de uma banda como o Genesis tem sempre de ter um carisma fora do comum. E eu não tenho outra definição para Gabriel.
Enfim, diante de tanto prazer musical, restam apenas algumas tristes constatações.
Uma: impressionante a quantidade de chatos que aparecem em shows e espetáculos hoje em dia! Gente incapaz de calar a boca e deixar os vizinhos em paz (mas também que ideia antiquada! Onde já se viu: querer prestar atenção na música num show de... Música!).
Mas aí está a principal fonte de desânimo: será que ainda se tem a simples noção - principalmente a rapaziada mais jovem - de que se pode elevar a música (ou qualquer forma de arte) a tal ponto de tornar a sua simples fruição uma experiência realmente importante? Não somente inesquecível, mas também transformadora das próprias percepções e concepções?
Sei que vou soar velho e elitista - e que certamente vai aparecer alguém ainda mais chato do que eu para ridicularizar meu gosto e meus objetos de prazer estético. Sem falar dos cínicos que vão reduzir tudo à dimensão mais rastaquera das imposições do show business e da onda de revivals que impera. Tudo bem
Mas não seria trágico se de repente – ou pior: paulatinamente – certas experiências privilegiadas de fruição estética e formação do gosto simplesmente desaparecessem?
Por isso mesmo agradeço a Steve Hackett e a todas as circunstâncias que o levaram a me dar essa oportunidade única de lembrar como a música que ajudou a me formar na juventude – e toda arte feita com paixão, esforço e talento – pode ser tão rica e imprescindível.