Não vou entrar no mérito das razões – algumas delas, de fato, possivelmente boas – para a mobilização popular de oposição ao Governo Dilma, ocorrida domingo passado em várias capitais. De qualquer modo, antes de ir ao ponto que realmente me interessa, acho importante que todos os setores favoráveis à presidente e/ou ao seu partido levem a sério, mesmo que obviamente discordando, tanto a magnitude da participação quanto o que pode restar de conteúdo substantivo na agenda dos protestos (ao menos em temas como os do combate à corrupção, ou dos problemas do contexto econômico, entre outros). Não obviamente para vestir alguma carapuça indevida. Mas sim para não perder o foco na agenda mais ampla de potenciais interesses populares com alguma dose de realidade, e que podem, também, alimentar ou moderar a energia das ruas (matéria em que certamente o desempenho governamental poderia ser corrigido, incrementado, aperfeiçoado ou melhor divulgado).
Vou me ater somente a uma tentativa de interpretação da viabilidade dos objetivos políticos possíveis da manifestação, sintetizados no mote principal: “Fora Dilma!” (para além dos elementos claramente irracionais e carentes de objetividade que este tipo de mobilização inevitavelmente também sempre incorpora). Ou seja: da concretização da meta alardeada de modo mais conspícuo pelos manifestantes e que se resume ao desejo de afastar do poder a presidente recém-reeleita.
Também não pretendo perscrutar aqui quais os resultados últimos concretos que se espera obter com tal intervenção radical em nosso status quo. Sejam eles de natureza política e partidária mais ou menos imediata – como a transferência das prerrogativas presidenciais de acordo com a linha sucessória constitucional e seus possíveis desdobramentos, de curto, médio ou longo prazos – ou os de caráter supostamente mais substantivo, quer dizer, os que implicariam alguma alteração efetiva no cotidiano dos brasileiros por força de tal mudança drástica de poder.
Deixo de bom grado essa tarefa aos seus proponentes e entusiastas.
Deixo de bom grado essa tarefa aos seus proponentes e entusiastas.
Gostaria apenas de enfatizar que, como todos nós sabemos, tal operação só pode ser efetivada de três modos: 1) ou a presidente renuncia (como Jânio Quadros, em 1961); 2) ou é impedida de governar por meios constitucionais, ou seja: por um processo completo de impeachment (tal como aconteceu com Fernando Collor, em 1992); 3) ou seu governo é interrompido pela força: como antes dela foram os de Deodoro (em 1891), Washington Luís (em 1930), Getulio Vargas (em 1945 e em 1954), Café Filho e Carlos Luz (impedidos, manu militari, em 1955), e João Goulart (em 1964), (e vamos parar por aqui porque já não sei se estou esquecendo alguém).
Não creio que precise lembrar que somente as duas primeiras formas são contempladas pela Constituição em vigor. E ambas apresentam alguns inconvenientes óbvios para os interessados. A primeira por ser bastante improvável, e a segunda por necessitar de uma série de requisitos e trâmites legais, formais, processuais e, finalmente, políticos, que além de não serem simples, demandam certo tempo e pré-condições. Para se ter uma ideia de quão excepcional é, na nossa História Republicana, a aplicação regular do instituto do impeachment – tal como procurei sugerir em artigo publicado recentemente em O Globo (“A exceção, não a regra”, 12/03/2015, http://oglobo.globo.com/brasil/artigo-excecao-nao-regra-pelas-tabelas-15570986 ) –, basta lembrar que embora tentado algumas vezes contra presidentes da República Velha (1889-1930), e ainda menos no período democrático de 1945-1964 – não por acaso, contra Vargas, em 1954, e contra Jango, dez fatídicos anos depois –, seus proponentes nunca lograram êxito imediato (pela via constitucional). Dado que, como disse, Carlos Luz e Café Filho foram impedidos em 1955 no contexto excepcional da chamada crise do 11 de novembro daquele ano, o impeachment de Collor, há pouco mais de duas décadas – de acordo com a Constituição e sem envolvimento militar –, é realmente a exceção à regra.
Mas talvez seja justamente a relativa proximidade temporal entre nós e aquela conjuntura – somada talvez a certo desconhecimento de nossa História anterior – o que pode estar levando muita gente a achar que tal processo seja algo simples e sem maiores riscos. Riscos que, aliás, podem ser maiores ou menores tanto em caso de sucesso quanto de fracasso de uma eventual tentativa a esse respeito, por parte do Congresso Nacional (que, como sabemos, é quem tem a prerrogativa de julgar e decidir nesses casos).
Seja como for, e ainda mais quando se houve lideranças oposicionistas falar em “sangrar” a presidente, pode ser que o apoio ao dito “Fora Dilma!” se trate justamente de uma tentativa não somente de pressão pela viabilização legal e política de um processo de impeachment, como também, alternativamente, de indução a um desgaste e uma desestabilização do governo de modos a que em curto ou médio prazo não venha a caber à presidente outro recurso que não a renúncia.
Esta estratégia, porém, além de ser uma franca e temerária aposta no famoso “quanto pior, melhor” (da qual depende), também não seria propriamente inédita (e não custa lembrar que na única vez que tal expediente parecia atingir seu objetivo, o tiro – e foi mesmo um tiro célebre – saiu, por assim dizer, pela culatra).
Cabe, portanto, aos incentivadores do movimento ora em curso, especialmente aqueles interessados e/ou comprometidos com a manutenção das atuais instituições democráticas, refletir um pouco sobre seus fins e meios.
Afinal, nada garante que o movimento atual de indignação, desconfiança e deslegitimação, se efetivamente encorpado e consequente, vá necessariamente se resumir a consumir as vítimas sacrificiais da hora, ou conter-se às imediações do Palácio do Planalto. Movimentos políticos arrebatados e plenos de ânimo, que se arriscam nos limites da norma – mais ou menos assim como avassaladoras aventuras extraconjugais – podem começar de formas bem conhecidas. Gerando até grandes expectativas. Mas seu desfecho é sempre imprevisível.
Quanto à terceira e mais tradicional forma de afastamento de presidentes no Brasil republicano, bem...
(Vou até a cozinha usar minhas panelas para preparar uma boa canja de galinha, como manda o dito popular)