Trapaça (American Hustle), de David O. Russell, bem que poderia ser apenas mais um bom exemplar bem sucedido daquele saboroso gênero cinematográfico de filmes sobre grandes golpes e armações, recheado de picaretas simultaneamente geniais e patéticos, que correm grandes riscos e lidam com altas somas de dinheiro, e, principalmente, adornado por bons diálogos, boas tiradas, e tramas rocambolescas, nas quais o primeiro a ser ludibriado pelas manhas e reviravoltas do roteiro é o próprio público.
Certamente, o filme é tudo isso. E já seria o bastante para recomendá-lo.
Mas há mais mistérios e seduções entre o céu e o inferno da boa malandragem cinematográfica.
Poderia gastar linhas com as qualidades de cada um dos elementos básicos da narrativa - roteiro, fotografia, música, edição, impecável direção de arte e reconstituição de época, etc. - mas tudo isso, a meu precário juízo de leigo nessas coisas, ainda é superado pelo trabalho de direção de elenco. Não há um único personagem que não receba a devida atenção (do diretor e, consequentemente, do público). O time de coadjuvantes - De Niro, inclusive - é todo ele brilhante.
Mas o quarteto de protagonistas de fato merece todos os prêmios e um lugar de destaque na nossa memória. Posso viver mais cem anos que não vou jamais esquecer e deixar de me comover com a magia do encontro e a cumplicidade entre Irving (Bale) e Sydney (Adams) - com direito à antológica cena de ambos na lavanderia -, nem com os transes tragicômicos de Richie (Cooper) e Rosalyn (Lawrence). Russell extrai tudo o que pode - e um pouco mais - de seu elenco.
E aqui caberiam alguns parágrafos só para louvar e idolatrar Amy Adams e sua Sydney/Edith (ou seja lá que outros nomes essa mulher fantástica adote). Nada, porém, que se compare à experiência de vê-la desfilar (ou desnudar) o seu incrível guarda-roupa.
Simplesmente deliciosa!
Por fim, mas de modo indispensável, há que se explorar as dimensões morais - isso mesmo! Eu disse morais... - desse maravilhoso filme sobre picaretas.
Primeiro porque, como já disse, Russell nos faz amar e ter piedade de cada um de seus pobres diabos, um mais patético que o outro.
E em segundo lugar, porque fez questão de doar a sua maior cota de generosidade e compaixão justamente para o personagem que hoje representa a bête noire da onda de hipocrisia moralistóide que empesteia nossa sociedade (e algures): um político. No caso, o prefeito Carmine, que acaba sendo envolvido no esquema, e mesmo sem qualquer interesse escuso, suja as mãos - como todo bom político (e, a rigor, todo bom cidadão) não pode, às vezes, deixar de fazer - para realizar alguma coisa de útil, ou de efetivamente importante.
É na celebração da amizade, mesmo a que não tem futuro - como a de Irving e Carmine - e da cumplicidade no amor - mesmo que no pântano da ilegalidade (ou na selva da sobrevivência) - que Trapaça pode traduzir sua inusitada "mensagem" (!?) moral.
Seja como for, existe algum nome melhor do que este - trapaça - para nossa auto-indulgência, nossos auto-enganos e fantasias de integridade ou superioridade ética?