domingo, 16 de março de 2014

Poesia na lavanderia, integridade na lama

Trapaça (American Hustle), de David O. Russell, bem que poderia ser apenas mais um bom exemplar bem sucedido daquele saboroso gênero cinematográfico de filmes sobre grandes golpes e armações, recheado de picaretas simultaneamente geniais e patéticos, que correm grandes riscos e lidam com altas somas de dinheiro, e, principalmente, adornado por bons diálogos, boas tiradas, e tramas rocambolescas, nas quais o primeiro a ser ludibriado pelas manhas e reviravoltas do roteiro é o próprio público.
Certamente, o filme é tudo isso. E já seria o bastante para recomendá-lo. 
Mas há mais mistérios e seduções entre o céu e o inferno da boa malandragem cinematográfica.
Poderia gastar linhas com as qualidades de cada um dos elementos básicos da narrativa - roteiro, fotografia, música, edição, impecável direção de arte e reconstituição de época, etc. - mas tudo isso, a meu precário juízo de leigo nessas coisas, ainda é superado pelo trabalho de direção de elenco. Não há um único personagem que não receba a devida atenção (do diretor e, consequentemente, do público). O time de coadjuvantes - De Niro, inclusive - é todo ele brilhante.
Mas o quarteto de protagonistas de fato merece todos os prêmios e um lugar de destaque na nossa memória. Posso viver mais cem anos que não vou jamais esquecer e deixar de me comover com a magia do encontro e a cumplicidade entre Irving (Bale) e Sydney (Adams) - com direito à antológica cena de ambos na lavanderia -, nem com os transes tragicômicos de Richie (Cooper) e Rosalyn (Lawrence). Russell extrai tudo o que pode - e um pouco mais - de seu elenco.
E aqui caberiam alguns parágrafos só para louvar e idolatrar Amy Adams e sua Sydney/Edith (ou seja lá que outros nomes essa mulher fantástica adote). Nada, porém, que se compare à experiência de vê-la desfilar (ou desnudar) o seu incrível guarda-roupa. 
Simplesmente deliciosa!
Por fim, mas de modo indispensável, há que se explorar as dimensões morais - isso mesmo! Eu disse morais... - desse maravilhoso filme sobre picaretas. 
Primeiro porque, como já disse, Russell nos faz amar e ter piedade de cada um de seus pobres diabos, um mais patético que o outro.
E em segundo lugar, porque fez questão de doar a sua maior cota de generosidade e compaixão justamente para o personagem que hoje representa a bête noire da onda de hipocrisia moralistóide que empesteia nossa sociedade (e algures): um político. No caso, o prefeito Carmine, que acaba sendo envolvido no esquema, e mesmo sem qualquer interesse escuso, suja as mãos - como todo bom político (e, a rigor, todo bom cidadão) não pode, às vezes, deixar de fazer - para realizar alguma coisa de útil, ou de efetivamente importante. 
É na celebração da amizade, mesmo a que não tem futuro - como a de Irving e Carmine - e da cumplicidade no amor - mesmo que no pântano da ilegalidade (ou na selva da sobrevivência) - que Trapaça pode traduzir sua inusitada "mensagem" (!?) moral.
Seja como for, existe algum nome melhor do que este - trapaça - para nossa auto-indulgência, nossos auto-enganos e fantasias de integridade ou superioridade ética?