quinta-feira, 30 de novembro de 2017

A falácia e o arremate (ou fazendo o boi dormir)

Enquanto à Direita as forças oligárquicas seguem com seu cerco e sua investida subversiva ao Estado brasileiro e às suas instituições – pondo em prática suas políticas imediatistas de terra arrasada –, à Esquerda, diante de conjuntura tão deprimente, é compreensível que mentes mais ou menos atônitas lambam suas feridas e muitas vezes busquem consolo em velhas e requentadas utopias românticas, que muitas vezes rescendem a conhecidos "espontaneísmos", “basismos”, ou coisa parecida.
Longe de mim desprezar ou minimizar a importância das diversas iniciativas, mais ou menos informais, de organização popular, dos chamados movimentos sociais, nem muito menos as eventuais inovações em matéria de participação política coletiva, de base, virtual ou presencial, etc. Muito pelo contrário. Apesar de tudo, ainda é alentador saber quanta indignação, energia e criatividade pode ser mobilizada em defesa de direitos e valores civilizatórios importantes, mesmo num contexto geral tão adverso.
Mas poucas vezes parece ter se tornado tão flagrante o modo com que os hipócritas discursos pseudo-éticos, antipolíticos, antipartidários, antiestatais, ou antiinstitucionais, tradicionalmente manipulados pelas oligarquias, são capazes de engrupir tão habilmente incautos de ambos os lados do espectro político e ideológico (e me restrinjo apenas aos antípodas – direita, esquerda – porque o tal do “centro” já foi inviabilizado entre nós há muito tempo).
De um lado, creio que raras vezes nesse país o discurso primário da moralização terá servido tão bem à entrega incondicional do patrimônio público à voracidade de uma fauna sui generis de predadores. Tudo com o beneplácito aparvalhado de amplos setores sociais, que depois de aposentar suas panelas e sua santa indignação seletiva, se encontram agora prestes a entregar-se ao canto de sereia do reformismo inconseqüente, ou ao primeiro simulacro de salvador da pátria que apontar no horizonte (não é à toa, aliás, que a última "inovação" resgatada pela onda reacionária em voga do museu das mais infelizes quinquilharias políticas aposentadas seja a da tal "candidatura avulsa"; só falta mesmo a volta do voto censitário ou da eleição indireta em dois graus.... Oops!! Melhor ficar quieto e não dar idéia... sabe-se lá qual a última "novidade" que podem tentar nos impingir?).
Por outro lado, assistimos também ao nem um pouco surpreendente paralelismo de forças, de um extremo ao outro, decantando as vantagens do sacrifício do Estado e de seu intruso poder regulador, em nome das forças metafísicas do “mercado” ou da “sociedade civil”. Se uns apostam todas as fichas nas promessas vagas de imediato alívio econômico, pela via da institucionalização sem peias da selvageria capitalista globalizada, outros aguardam a ressurgência messiânica e mais ou menos espontânea das "massas oprimidas"– talvez à maneira efêmera e em grande medida enganosa de 2013 – ou a reencarnação de um novo e autêntico “agente revolucionário” (com um perfil mais “pós-moderno”, certamente).
E segue o baile.
Conhecendo exatamente, contudo, velhas e novas receitas de como perpetuar seus privilégios e oportunidades, as oligarquias não dão ponto sem nó. Após a conquista golpista do Poder Central, avançam em sua sanha, eliminando a legitimidade de qualquer forma de capacitação política popular e eficaz – principalmente via partidos, é claro – , além de preparar o que pode ser o golpe mortal da pulverização e neutralização do risco “populista” – melhor dizer, simplesmente, popular – com novo arremate de misericórdia: impondo ao país algum arremedo ou variante disfarçada do popularíssimo regime parlamentarista. Aquele já duas vezes rejeitado pelo eleitorado, mas através do qual se institucionaliza o acesso legal – e se possível perpétuo – ao poder para as oligarquias ruins de voto agregado em enormes magnitudes (como, por acaso, numa eleição presidencial brasileira).
Mas quem afinal se importa com instituições? Numa hora dessas, quem ainda acredita que valha à pena perder tempo refletindo e pesquisando sobre seus recursos e implicações? Que diferenças isso pode fazer agora?
Talvez não muita. Ou muito pouca. Sem dúvida, o contexto geral não ajuda, nem estimula.
Não nos iludamos, porém: assim como chegou onde está agora pela via – tortuosa, é certo, mas não menos eficaz – das instituições, é por meio delas que as oligarquias continuam e continuarão a exercer seu poder e a traficar com seus diversos lobbies.
Não somente porque aquelas as servem desigualmente bem (como se queixam – com forte dose de razão – as esquerdas).
Mas também porque sem elas, as tais das instituições, não se pode exercer, a rigor, poder efetivo e razoavelmente duradouro algum. Inclusive para modificá-las, as próprias instituições, e, é claro, o mais importante: a realidade na qual se inserem.
Esta lição nunca foi esquecida pelas oligarquias. Mesmo quando fingem desacreditá-la tão sistematicamente.
(E dormem os bois; mesmo com um barulho desses...)

sábado, 18 de novembro de 2017

Liberalismos, autoritarismos e outros "ismos" (inclusive os descaradismos, caradepauismos, etc.)

Minha querida mestra Ângela de Castro Gomes, colega de tantos anos de Cpdoc, deu entrevista para o Nexo Jornal com direito a uma pequena aula de raro e indispensável bom senso histórico, motivada pela última pérola de irrelevância discursiva produzida por Sua Excelência, o presidente preposto interino da ex-República, na qual ele teceu profundíssimos comentários sob certa tendência autoritária dos "brasileiros", de par com outras elucubrações inovadoras acerca das velhas e conhecidas oscilações entre centralismo e federalismo em nossa história (esse é um lado bom que ainda existe na prática do jornalismo, apesar de tudo: a oportunidade de ouvir a Ângela discorrer sabiamente graças a um pretexto irrelevante).
Não que as longevas e densas discussões sobre autoritarismos, liberalismos, federalismo, ou centralização política e administrativa no Brasil, sejam em si pouco importantes, ou inatuais. De modo algum. 
Mas quem pode levar a sério o discurso de Sua Excelência e se dar ao trabalho de realmente cotejá-lo com um debate tão rico e multifacetado como este, que há tantas décadas vem sendo travado em alto nível sobre as características próprias da trajetória política nacional, e as alternativas para ela, quando se atenta para a natureza da "ordem temerária", seus próceres e o conjunto de sua "obra" até aqui?
Como de hábito, a conversa fiada presidencial sobre autoritarismo, centralismo e que tais se dirige ao mesmo e inconsistente público-alvo: essa coisa ridícula que hoje se arvora no Brasil o epíteto de "liberais", e que insiste em nos fazer crer que estamos efetivamente diante de "reformas" consistentes e aptas a nos colocar em algum rumo que não o da reprodução em nova escala da velha barbárie nacional (com seus bolsões cada vez menores e mais ilhados de um simulacro de civilização moderna, ou pós-moderna).
Já se disse que o liberalismo no Brasil nunca passou de um grande equívoco. É possível que sim, ao menos em linhas gerais. Afinal, defender, à moda de um liberalismo econômico consistente, a igualdade de oportunidades, a livre-concorrência e a iniciativa privada produtiva em terra de escravocratas, mafiosos, especuladores e rent-seekers; ou, de outro lado, na seara mais própria do liberalismo político clássico, o primado do Estado de Direito, das garantias fundamentais e do respeito à Constituição e às instituições – em uma nação de golpistas, "autoritários instrumentais" e irresponsáveis castas prebendarias –, não são mesmo tarefas fáceis (que o digam, pois, os verdadeiros liberais brasileiros, de uma ou ambas as vertentes; com os quais, aliás, nunca pude concordar inteiramente, mas que muitas vezes respeitei como interlocutores sérios e comprometidos, à sua maneira, com a democracia e com o bem-estar do povo).
Não. Tudo indica que não se fazem mais, por aqui, liberais como antigamente.
Mas nesse ponto, pensando bem, porém, a fala presidencial sobre a República de fato não deixa de ressoar nosso passado e algumas de nossas tradições mais antigas. 
A fala de Itu, tal como poderá ficar célebre no futuro, evoca perfeitamente – e até geograficamente – uma época que julgávamos de muito superada: aquela em que oligarquias fechadas se digladiavam – com maior ou menor polidez – pelo acesso exclusivo ao poder de mandar e desmandar no país, servindo-se do Estado para suas negociatas, promoções predatórias de lucros artificiais – e quando necessário, socialização das perdas –, e tudo sob a fachada de um regime constitucional, à época aparentemente moderno, democrático e liberal. Em que, contudo, a luta política era muitas vezes resolvida na ponta da faca – quando não pela "degola" e via bico de pena – e na qual, por último, mas não menos importante, a chamada "questão social" era tratada como "caso de polícia".
A dúvida maior que fica, então, é mesmo de ordem histórica ou cronológica: até onde vai o furor reacionário e passadista da "Nova Ordem"? 
Pára em Itu e na Velha República?
Ou retrocede mais algumas décadas (ou séculos)?

segunda-feira, 13 de novembro de 2017

A agenda

Diante do Febeapá que prolifera incessantemente, não só via redes, mas igual e principalmente na ainda chamada “grande mídia”, o artigo publicado há semanas por Marcos Coimbra, na CartaCapital ("Lula abriu fogo"), com o compromisso do ex-presidente, se reeleito em 2018, de convocar referendos para todas as principais "reformas" aprovadas pelo "Governo Temer" e sua base, desde o impeachment de Dilma, é uma grata exceção e dá realmente o que pensar. Não somente pelo conteúdo da matéria em si – a promessa de Lula, sua importância e implicações –, mas principalmente pelo tom, diria otimista, com que o articulista parece avaliar a possibilidade não somente de que o líder petista possa, de fato, disputar a eleição, e de que uma vez vencendo – como hoje é apontado pelas pesquisas, nos lembra Coimbra – conseguirá realmente tomar posse, governar e, inclusive, convocar todos os referendos necessários para submeter a agenda da “Nova Ordem” ao teste da aprovação popular (que, realmente creio, assim como o autor, dificilmente obterão; ao contrário da solicitude irresponsável – pra dizer o mínimo – com que tais "reformas" vêm sendo acolhidas pelas maiorias golpistas no Congresso).
Gostaria imensamente de partilhar do otimismo do articulista, não exatamente, ou somente, no que diz respeito à provável rejeição das "reformas" pela maioria do eleitorado brasileiro, mas sim no que concerne a acreditar que a pré-condição política para tais referendos, ou seja, a vitória e posse de Lula – ou de qualquer outro candidato com o mesmo compromisso – possa ser satisfeita no contexto atual de perversa subversão das instituições.
Ou seja: a manutenção dessa agenda impopular de "reformas" e a neutralização a qualquer custo e risco das forças que possam obstá-la é justamente o que ainda mantém razoavelmente coesa a coalizão golpista. E é muito difícil acreditar que, diante de sua relativa hegemonia atual, qualquer alternativa que minimamente represente ameaça à primeira – a agenda – seja tolerada. Não surpreende, inclusive, que tal tema tão importante não tenha ocupado maior espaço na "grande mídia", como bem o mencionou Coimbra. Como diz o linguajar popular, a quem afinal interessa levantar essa lebre?
É uma pena.
Pois essa poderia – e creio, deveria – ser a principal agenda e debate delimitador, e definidor de posições na campanha presidencial que, até segunda ordem, teremos em 2018: a da manutenção e aprofundamento desse conjunto de "reformas" e do retrocesso e desastre que ele promete para o futuro mais e menos imediato desse país, ou de uma busca – ou retorno – a alternativas de políticas que realmente recoloquem o Brasil no rumo de um crescimento com o mínimo indispensável de autonomia nacional, forçosa (re)democratização política e redistribuição da renda. A proposição de tal agenda de debate, aliás, já seria uma boa justificativa, tanto para o movimento do ex-presidente, quanto para a tentativa do articulista e seu veículo atentarem para o fato e nos informar a respeito (um bom – e assustador – resumo das implicações de partes da atual agenda de "reformas", nos foi fornecido recentemente pelo Senador Roberto Requião (PMDB-PR)).
Infelizmente, porém, já sabemos que nada disso deverá ocupar as manchetes ou dominar a pauta oficial dos previstos e possivelmente futuros debates eleitorais.
Havendo mesmo eleições, a agenda de campanha que será privilegiada pelos golpistas e seus porta-vozes na "grande mídia", e que pela enésima vez vai se forçar goela abaixo do eleitor, será a mesma que os reacionários e seus seguidores analfabetos políticos privilegiam, desde sempre: que o grande problema do Brasil, a ser resolvido pelo futuro Salvador da Pátria, é a velhíssima corrupção, e/ou a voracidade da bête noire do Estado regulador.
Que só existe uma única, repisada (e desastrosa) saída para as crises nacionais: aquela que, de um modo ou de outro, passa necessariamente por poupar as classes mais privilegiadas, escancarar as oportunidades para todo tipo de negociata predatória, deixando que todos os custos afinal recaiam sobre o mesmo e velho lombo dos pobres e da classe média (inclusive das legiões que embarcaram e ainda embarcam na esparrela da "passagem do Brasil a limpo!"– limpo sim, mas só se for de qualquer alternativa real de desenvolvimento econômico e social dignos desses nomes). E que se os mesmos pagadores de sempre não puderem ser convencidos a escolher por vontade própria assumir tais encargos – elegendo os candidatos favoritos da banca –, que se retire deles, enfim, o estorvo chamado voto e o que ainda restar das demais ilusões de soberania popular.