quarta-feira, 19 de julho de 2017

De contrastes e contragolpes


"Such a parcel of rogues in a nation...", 
(Robert Burns, 1791)

Não vou me alongar agora sobre a já fartamente prevista e denunciada consumação da perseguição sistemática contra Lula pelo arremedo de Torquemada de Curitiba. O argumento, o roteiro e o desenrolar desse enredo vergonhoso já são bem conhecidos e quem quiser continuar acreditando que isso faz parte de um simples processo normal de moralização pública que faça bom proveito. Sempre há ingenuidade e justificativa para tudo e para todo o tipo de preconceito e autoindulgência nesse mundo.
Prefiro me dedicar a coisas mais graves (afinal, essa aberração jurídica certamente terá muitos desdobramentos ainda, antes que o seu objetivo final, a inviabilização da candidatura de Lula nas próximas eleições, possa ser garantido)
Retomando o fio da discussão sobre a "reforma trabalhista", porém, creio que é difícil saber o que é mais desastroso: o conteúdo aparentemente tosco e mal-ajambrado do conjunto de itens que compõem o monstrengo, ou a igualmente aparente coesão do bloco político heteróclito que impôs ao país essa arapuca. 
No que se refere ao conteúdo da reforma, à parte o claro e principal direcionamento no sentido de eliminar qualquer forma de proteção ao trabalhador - seja com apoio sindical ou por intervenção da Justiça -, em sua óbvia e extremamente desigual posição de barganha frente ao empregador, chamam a atenção os penduricalhos que parecem atender a todo tipo de interesse "empresarial" ultra-específico e suspeito. Na verdade, só um objetivo geral parece saltar aos olhos: oficializar, legalizar e, portanto, estender abusos de poder e informalidades já fartamente praticadas no "mercado" e excluir qualquer forma de mediação do Poder Público que não seja em ratificação ao poder concreto, informal e arbitrário dos patrões. Ou seja: se antes a grande maioria de nós já vivia, de fato, sob uma forma particularmente perversa de "capitalismo selvagem", agora tudo indica que muitos mais viveremos, de direito, sob alguma forma de exploração e promoção ainda maior de exclusão e desigualdade, cujo conceito ainda me escapa (ou, na verdade, é tão antigo, tão digno dos tempos de outros "modos de produção", que já o havia esquecido). Não há mais nem como soar cômicas as manifestas apostas - não se sabe se efetivamente ingênuas ou cínicas - que se ouve aqui e acolá acerca dos possíveis efeitos virtuosos dessa "reforma" numa futura geração de renda e empregos, e na retomada do crescimento (será? Talvez daqui a décadas, quando finalmente toda a economia nacional se adaptar a tais mecanismos "meritocráticos" de busca da eficiência e produtividade, e nos legar seus tão ansiosamente aguardados benefícios coletivos de modernização e bem-estar - comprometidas, é claro, apenas algumas gerações dos brasileiros mais vulneráveis, sacrificados no meio do caminho em prol de fins tão nobres....). 
Já no que diz respeito ao bloco político, há várias razões que poderiam nos ajudar a explicar a sua relativa força e eficácia pra-lamentar. Algumas são perfeitamente corriqueiras e inerentes ao sistema: como a fidelidade das bancadas hoje majoritárias a suas diversas e economicamente poderosas clientelas, assim como a relativa consistência programática das primeiras - consistência mais ou menos ideológica ou fisiológica, não faz tanta diferença -, assim como sua habitual subserviência diante da caneta afiada de um Executivo desprovido de pruridos protocolares, o principal responsável, afinal, pelo controle e avanço destrutivo da atual agenda. Outras, de fato, exalam aromas ainda menos agradáveis, relativos às moedas de troca literalmente mobilizadas para garantir senão as próprias reformas, ao menos os requisitos de poder necessários à continuidade das mesmas - como, aliás, o ilustram os transes patéticos por que passou a Comissão de Constituição e Justiça da Câmara na semana passada (mas que importa, afinal, diante de outros fatos realmente graves, como "pedaladas fiscais"?).
Isto nos leva, porém, ao ponto crucial: o dos contrastes entre a pusilanimidade, a canastrice e a sofreguidão dos líderes políticos do golpe e seus desdobramentos, assim como as tensões e rivalidades crescentes entre eles, de um lado, e a coerência de motivações e hegemonia política da agenda que promovem e representam, de outro. 
Sim: o golpe é representativo.
Ele não somente representa interesses bem delineados e específicos, como se move cada vez mais desembaraçadamente graças a omissões conhecidas e ao consentimento tácito - quando não o apoio entusiástico - de certos setores, maiores ou menores, de parcelas da chamada "opinião pública" (sem esquecer, é claro, a grande maioria da "opinião publicada"). 
Como em todo processo dessa natureza, contudo, é claro que tal unidade é mais aparente do que real, mais superficial do que profunda, mais contingente e efêmera do que duradoura. O que em geral lhe garante maior sobrevida e objetividade política, porém, não são outros fatores senão, de um lado, uma mistura de oportunismo com luta desesperada por sobrevivência - em contexto cada vez mais hobbesiano e anárquico de grande incerteza e miopia imediatista - e, de outro, a simplória e patologicamente oportuna eleição de algum inimigo comum, ou bode expiatório, ou ainda, eventualmente, a entronização de algum salvador da pátria ou crença miraculosa em algum princípio ou projeto, que possam atrair uma mobilização mais ou menos cega e irresponsável, no afã de se fugir a qualquer custo e o mais rapidamente possível do círculo vicioso das crises e da perda de referências ou apoios na realidade.
Certamente a grande maioria do povo brasileiro não se converteu subitamente às promessas metafísicas do neoliberalismo tupiniquim, nem igualmente dirige suas preces ao sucesso e à consagração da ilustríssima administração Temer, ou de um eventual arremedo de gabinete parlamentarista liderado pelo Democratas ou pelo Partido que ainda teima em se chamar da Social-Democracia Brasileira. 
Ainda assim, são estes e suas altas clientelas os principais beneficiários imediatos da reação em curso e das resultantes imediatas do transe a que há anos se submeteu nossa sociedade, ao revolver o lodo do seus reservatórios de temores e preconceitos, seu "volume morto", há tanto tempo esquecido e estagnado.
Sim. Eles dão as cartas.
Por enquanto.
Mas assim como a agenda do golpe se autonomiza - e hoje, indubitavelmente, já pode até prescindir de prepostos como Temer, Maia e cia. ilimitada - a pauta do contragolpe vai necessariamente adquirindo seus contornos inevitáveis e urgentes. E só o tempo poderá dizer como e quando o "legado" golpista em construção será efetivamente confrontado e superado.
Até lá, somente uma certeza: dificilmente conheceremos algo que possa ser efetivamente chamado de paz social ou estabilidade.