Só agora li, numa dessas retrospectivas típicas de fim
de ano, o interessante artigo de Annalisa Merelli, publicado na Quartz no
início de 2017, sobre bolhas de opinião na rede (https://qz.com/866727/filter-bubbles-and-facebok-why-so-many-people-hate-the-liberal-elite/).
Assim como ela e muitos colegas, há muito cultivo uma
implicância intensa para com o "conceito" de "populismo".
Parafraseando meu querido mestre César Guimarães, diria que populista é todo
aquele meu rival, adversário político ou simples desafeto que independentemente
de maior ou menor consistência ideológica, e seja qual for sua espécie,
demonstra sempre a irritante e característica capacidade de ser popular. E o
que é pior: mais popular do que eu ou posições, partidos e candidatos de minha
preferência.
Pois eis que com a mesma inconsistência, e muitas
vezes traindo a mesma inveja e ressentimento de sempre – ou o mesmo oportunismo
pseudo-técnico habitual – o famigerado epíteto ressurgiu com força total por
toda a parte. Como de praxe, em discursos conservadores ou reacionários
suspeitos. Do mesmo modo, é claro, no jargão cada vez mais pobre, superficial, inconseqüente
e repetitivo de alguns jornalistas. Mas também seguiu freqüentando assiduamente
toda uma produção acadêmica que reputo, no mínimo, como teoricamente problemática.
E tem para todos os gostos: dos velhos e repisados
"populistas de esquerda" – com sua mania de propor medidas que
parecem adequadas para combater desigualdades; e que, pasmem!, muitas vezes, de
fato, funcionam; pelo menos eleitoralmente; sendo, obviamente, ainda capazes de
atrair muitos simpatizantes – aos "novos""populistas de
direita": por sua vez, pródigos na manipulação de temores e preconceitos primários,
e não raro desagradáveis, mas que não deixam de refletir (mesmo que perversamente)
problemas e tensões reais da vida social e econômica.
Não que os fenômenos políticos assim retratados não
mereçam atenção e um olhar crítico. É claro que não só merecem, como se impõem
a nosso exame. Afinal, o simples fato de algo ou alguém ser eventualmente
popular por si só não significa que necessariamente seja bom, benéfico ou
recomendável (não por acaso, a história da política e da cultura de massas está
cheia de exemplos nesse sentido). Sabemos o quão inconstantes e efêmeros podem
ser a aprovação e o gosto da maioria. Assim como a própria noção de maioria
pode ser enganosa, unidimensional e transitória.
Mas por isso mesmo o fato de algo ou alguém ser objeto
da aprovação ou da escolha de muitos não deixa de ser por si só relevante tanto
em termos econômicos e sociológicos quanto políticos. Ainda mais quando vivemos
em grandes economias de mercado e, especialmente, em regimes democráticos de
massa, em que a regra de maioria é o principal instrumento, não obviamente de
aferição do que é justo ou adequado, ou efetivamente representativo da
"verdadeira vontade popular", mas sim de decisão para processos
complexos de definição de regras comuns e alocação de poderes e recursos
públicos.
Na literatura histórica, econômica e política, no
entanto, o jargão possui longa trajetória, já tendo incorporado os mais
diversos sentidos e conteúdos. Há muito, porém, parece ter assumido contornos
quase sempre pejorativos e depreciativos.
Em primeiro lugar, é claro, em relação aos próprios
protagonistas políticos, ideológicos ou culturais que muitas vezes interpelam e
se valem das reservas de energia social, mal ou bem aproveitadas, de
ressentimentos profusamente reproduzidos na vida social contemporânea, e até de
demandas reais mais ou menos latentes e confusas para viabilizar seus projetos,
ambições ou fantasias. Com más ou boas intenções e resultados.
Mas não há dúvida de que o alvo definitivo da acusação
de "populismo", no fundo, é sempre o mesmo: o povo, ou melhor, a
maioria, suposta ou real, que consagra ou pode consagrar, apoiar, estimular as
posições e as lideranças "populistas".
Por isso, aliás, o fenômeno do "populismo" é
histórica e especificamente contemporâneo e democrático. Ele se encontra
indissoluvelmente atrelado a processos democráticos decisivos de formação e
manifestação de escolhas e preferências individuais agregadas ou coletivas de
grande magnitude e capacidade de incorporação popular – seja qual for a
substância ou consistência mais ou menos equívoca e transitória destas – e, é
claro, também ao aspecto competitivo inerente aos meandros dos grandes
mercados, políticos, econômicos e ideológicos. O que obviamente implica o risco
e a efetivação de freqüentes derrotas particulares e ideologicamente
perspectivadas, à cada "escolha" ou "decisão" da massa
"populista".
Hoje, como de hábito, o "conceito" é
novamente manipulado, a torto e a direito, para se referir a fenômenos que
rigorosamente podem não ter nada em comum (exceto, obviamente, uma certa e
incômoda popularidade mais ou menos circunstancial ou relativa). Assim, por
exemplo, podem acabar no mesmo saco, de um lado, a defesa de policies (re)distributivas,
ou a tentativa de preservação de direitos políticos e sociais arduamente
adquiridos, mesmo que eventualmente problemáticos, e, de outro, a propagação de
libertarismos pseudo-meritocráticos a favor da atomização mais ou menos anômica
de indivíduos "livres" que assim, via automatismos de mercado, nos
conduzirão, finalmente, ao paraíso do crescimento por alocação espontânea,
ótima e natural de recursos, ou a um ideal de completa liberdade e auto-realização
individual, digna de um episódio do Discovery Channel sobre a lei do mais forte
e a dramática luta pela sobrevivência na selva.
Mas o mecanismo subjacente parece ser sempre o mesmo:
eu, o interlocutor que me valho do epíteto e com ele rotulo o objeto de meu desagrado
o faço não apenas no sentido da crítica, mas principalmente como modo de
expressar a minha superioridade ética ou intelectual – em geral, dá no mesmo –
em relação às razões ou motivos que conduzem as bases "populistas" a
apoiar e escolher suas lideranças, teses ou demais commodities. Pouco se me dá
se existem razões maiores e objetivas para tais "equívocos".
Afinal, o que me importa mais, realmente? Compreender
a realidade ou simplesmente reafirmar – em especial, para mim mesmo – a justeza
e o acerto das minhas convicções (que, eventual e infelizmente, acredito
relativamente minoritárias e em desvantagem competitiva diante de adversários
ou rivais "populistas")?