quarta-feira, 23 de março de 2016

Os russos, a miopia e o pseudo-pragmatismo

Dada a indigência legal dos argumentos invocados para cassar o mandato de Dilma Rousseff com algum verniz de legitimidade institucional - com o agravante conjuntural de que tal tarefa temerária caberá a uma Legislatura que vem conseguindo a proeza de liquidar o que ainda restava da já de muito combalida reputação do nosso Parlamento -, restou aos aprendizes de feiticeiro da hora o investimento pesado na desconstrução sistemática da imagem da principal liderança política e popular do país, Luís Inácio Lula da Silva.
Assim buscou-se e busca-se atingir dois objetivos estratégicos: 1) seguir insuflando a indignação moral mais ou menos seletiva de parcelas consideráveis da opinião pública - já devidamente predispostas à mobilização contra o governo e seu partido -, e com isso carrear mais apoio popular para o impeachment, exercendo assim, consequentemente, maior pressão sobre as instituições do Estado e da Sociedade Civil com prerrogativas ou poderes para interferir no rumo dos acontecimentos; 2) inicialmente inviabilizar uma nova candidatura de Lula à presidência, seja em 2018 - se os atuais mandatos de Dilma e seu vice foram mantidos - ou mesmo antes disso, se o golpe em curso se consumar ainda este ano; mas agora também trata-se, é claro, de se impedir de qualquer maneira a ida de Lula ao ministério de Dilma; não somente por tudo o que isso pode representar em termos de mobilização de apoios ao governo no Congresso - onde inclusive poderia se abrir uma janela de negociação e consequente sobrevida política para a presidente - mas também, é claro, pela capacidade que Lula ainda tem de aglutinar as mais ou menos dispersas forças à esquerda, para além do próprio PT, como aliás qualquer pessoa que tenha acompanhado com um pouco mais de atenção as manifestações da última sexta-feira poderia perceber (servindo-se, de preferência, de outras fontes de informação que não exatamente as "oficiais" e seus exercícios numerológicos e metafísicos de "interpretação").
De qualquer modo, é possível que a primeira estratégia - a de pressão de opinião pública - já esteja surtindo efeito. Uma vez que começaram a proliferar manifestações de apoio ao impeachment por parte de várias entidades e associações, algumas de longa e digna tradição.
Mas também é bastante plausível a hipótese de que tais adesões a essa aventura estejam sendo movidas mais por uma espécie de cálculo supostamente pragmático em torno da urgência de se superar rapidamente o impasse político e permitir a um (novo) governo qualquer algum encaminhamento, a toque de caixa, da crise econômica pela qual estamos passando.
Pois é. A miopia - quer dizer: a dificuldade de enxergar o que se encontra mais afastado no espaço (mas também no tempo) - é um traço constitutivo da condição humana, finita e limitada. E nem sempre seus efeitos são necessariamente negativos. Muito pelo contrário.
O problema é quando a visão - de curto, médio ou longo alcance - se deixa turvar pela ansiedade e pelo chamado "pensar desejante", ou wishful thinking. A primeira nos conduz à irreflexão e à precipitação. O segundo distorce a nossa percepção da realidade e nos leva a enxergar somente os sinais que nos confortam - ou confirmam nosso entendimento ou preconceitos prévios - e a desprezar e a fazer vista grossa para as evidências ou informações que contrariam nossos desejos e prognósticos favoritos.
É mais do que compreensível a angústia que muito sentem hoje neste país, assim como o desejo sincero de superação de ambas as crises, em especial a econômica, mas também a política, e o mais rapidamente possível. Compartilho tanto destes sentimentos quanto desse desejo.
Mas nem por isso creio que possamos ou devamos nos iludir com relação aos possíveis cenários futuros, para além daquilo que nossa miopia nos permite ver.
Por isso as soluções que buscarmos para a resolução dessa crise - se efetivamente ainda as há - não podem se deixar aprisionar por cálculos apressados e objetivos imediatistas.
Para que tenhamos soluções concretas e quem as coloque em vigor - ou seja, governo e parlamentos minimamente legítimos e, consequentemente, eficazes - há que cuidar, antes de tudo, das chamadas instituições democráticas.
A começar pelas mais importantes: o respeito à Constituição e às regras do jogo.
Sem eles não adianta trocar o técnico nem o time inteiro.
Ou, pelo menos, como se diz na sábia linguagem do futebol (e do saudoso Garrincha): não sem antes "combinar com os russos".

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