Não, você
não bebeu demais, nem colocaram inadvertidamente alguma droga suspeita no seu
copo. Você está irremediavelmente sóbrio.
A sua
confusão mental não é simplesmente mental, muito menos exclusivamente sua.
O mundo
realmente mudou. Talvez você tenha mesmo cochilado um pouco, ou distraiu-se
enquanto tudo acontecia. Mas agora é tarde. Muito tarde.
Esqueça o
universo com o qual estava acostumado, há tanto tempo.
Olhando à
sua volta, eu sei, tudo à primeira vista parece igual. O mesmo sol, a mesma
paisagem, os mesmos vizinhos e seus cães de estimação, o mesmo mau gosto
musical em alto volume das festas de fim de semana.
Mas não
se iluda.
Como
diziam Milton e Lô, "nada será como antes"...
A
princípio, o deslocamento inicial se deu de modo sutil, quase que
imperceptivelmente.
Mas seus
desdobramentos logo assumiram maior relevância e visibilidade.
Até que,
em determinado momento... pronto! Tudo havia mudado. Como se da noite para o
dia.
Na
superfície das coisas, de novo, aparentemente, nada pareceria fora de roteiros
já conhecidos e, até certo ponto, banais: mais uma crise econômica em escala e
natureza globais, mobilizações populares súbitas, tão aparentemente
avassaladoras quanto relativamente efêmeras, certas escolhas eleitorais ou
plebiscitárias infelizes, novos demagogos e oportunistas no pedaço, mais um
golpe de Estado ou coisa parecida em alguma republiqueta, conflitos civis e
explosões de violência política, ou terror, matizadas, ou embaladas, por
rivalidades étnicas ou religiosas, migrações em grandes números, devidamente
rejeitadas por xenofobias e racismos ancestrais e redivivos, etc. Em suma, nada
que já não tivéssemos visto antes ("and the parting on the left, is now
parting on the right, and the beards have all grown longer overnight").
Mas talvez
não antes com tamanha profusão, velocidade e aparente sincronia. Pelo menos não
muito recentemente.
Eis aí um
ponto a reter: a simultânea banalidade (do "mal"?) de todos esses
fenômenos, de par com a forte sensação de que parecemos estar diante de poderosas
forças tectônicas em movimento.
É claro
que a essa altura alguém já tirou conclusões velhas e repisadas: “mas é claro
que tais forças têm nome e são bem conhecidas: o “mercado”, o “sistema”, o
“capitalismo”, etc”.
Tá legal.
Pode ser.
Mas além
de aparentemente explicar tudo, sem na verdade esclarecer coisa alguma, esse
tipo de resposta pronta não nos deixa ver o que pode haver de excepcionalmente
novo, ou inusitado, no contexto atual. Ainda que as tais forças profundas sejam
basicamente as mesmas de sempre.
Ou seja:
há algo ao mesmo tempo muito mais profundo, superficial e diferente nesta nova
deriva continental (ou melhor, global). O planeta certamente deslocou-se para
algo que indubitavelmente podemos chamar de direita, atraindo
gravitacionalmente inclusive praticamente tudo o que se encontrava ao centro
correspondente, e parece encurralar a consequente esquerda, ou nos seus pontos
extremos, ou na mais desesperadora impotência.
Mas o
estrago pode ser bem maior do que imaginam os novos (?) reacionários e suas
claques desavisadas, em meio ao regozijo fugaz e inconsequente que suas
vitórias, mais ou menos pirrônicas, proporcionam.
A deriva,
tal como um tsunami, leva de roldão consigo as instituições conhecidas e tão
lenta e arduamente cultivadas, o que ainda podia restar de sua legitimidade e,
assim, suas frágeis, mas às vezes efetivas capacidades e recursos para lidar
justamente com os males políticos, econômicos e sociais que nos afligem, e que
certamente hão de se agravar e muito no futuro mais imediato.
Parafraseando
o dito popular: estamos na selva (ou pântano) sem cachorro (e sem bússola,
Baedeker, ou Google Maps).
Tal como
o volume morto dos reservatórios esvaziados, as forças tectônicas que agora
deslocam o mundo de seus eixos políticos e institucionais prévios sempre
estiveram aí, antes, quem sabe recônditas e recolhidas, sob a superfície, a
remoer seus ressentimentos, em sua relativa e cíclica marginalidade. Talvez
intimidadas pela hegemonia enganosa dos democratas - mais ou menos convictos -,
ou pelo autoconsciência, mais ou menos profunda, acerca da pusilanimidade e do
caráter pernicioso de seus próprios sentimentos e ideias.
Faltava
acordá-las e lhes permitir se assumir de público, reconhecerem-se a si mesmas
em sua variedade e contingentes. Além, é claro, de agregar-lhes o assentimento
tácito das grandes maiorias silenciosas, o entusiasmo das legiões de neófitos,
a cumplicidade dos agentes institucionais irresponsáveis, e o adesismo dos
oportunistas.
De fato,
nada realmente assim tão novo sob o sol.
E no
entanto...
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