domingo, 12 de fevereiro de 2017

Deriva

Não, você não bebeu demais, nem colocaram inadvertidamente alguma droga suspeita no seu copo. Você está irremediavelmente sóbrio.
A sua confusão mental não é simplesmente mental, muito menos exclusivamente sua.
O mundo realmente mudou. Talvez você tenha mesmo cochilado um pouco, ou distraiu-se enquanto tudo acontecia. Mas agora é tarde. Muito tarde.
Esqueça o universo com o qual estava acostumado, há tanto tempo.
Olhando à sua volta, eu sei, tudo à primeira vista parece igual. O mesmo sol, a mesma paisagem, os mesmos vizinhos e seus cães de estimação, o mesmo mau gosto musical em alto volume das festas de fim de semana.
Mas não se iluda.
Como diziam Milton e Lô, "nada será como antes"...
A princípio, o deslocamento inicial se deu de modo sutil, quase que imperceptivelmente.
Mas seus desdobramentos logo assumiram maior relevância e visibilidade.
Até que, em determinado momento... pronto! Tudo havia mudado. Como se da noite para o dia.
Na superfície das coisas, de novo, aparentemente, nada pareceria fora de roteiros já conhecidos e, até certo ponto, banais: mais uma crise econômica em escala e natureza globais, mobilizações populares súbitas, tão aparentemente avassaladoras quanto relativamente efêmeras, certas escolhas eleitorais ou plebiscitárias infelizes, novos demagogos e oportunistas no pedaço, mais um golpe de Estado ou coisa parecida em alguma republiqueta, conflitos civis e explosões de violência política, ou terror, matizadas, ou embaladas, por rivalidades étnicas ou religiosas, migrações em grandes números, devidamente rejeitadas por xenofobias e racismos ancestrais e redivivos, etc. Em suma, nada que já não tivéssemos visto antes ("and the parting on the left, is now parting on the right, and the beards have all grown longer overnight").
Mas talvez não antes com tamanha profusão, velocidade e aparente sincronia. Pelo menos não muito recentemente.
Eis aí um ponto a reter: a simultânea banalidade (do "mal"?) de todos esses fenômenos, de par com a forte sensação de que parecemos estar diante de poderosas forças tectônicas em movimento.
É claro que a essa altura alguém já tirou conclusões velhas e repisadas: “mas é claro que tais forças têm nome e são bem conhecidas: o “mercado”, o “sistema”, o “capitalismo”, etc”.
Tá legal. Pode ser.
Mas além de aparentemente explicar tudo, sem na verdade esclarecer coisa alguma, esse tipo de resposta pronta não nos deixa ver o que pode haver de excepcionalmente novo, ou inusitado, no contexto atual. Ainda que as tais forças profundas sejam basicamente as mesmas de sempre.
Ou seja: há algo ao mesmo tempo muito mais profundo, superficial e diferente nesta nova deriva continental (ou melhor, global). O planeta certamente deslocou-se para algo que indubitavelmente podemos chamar de direita, atraindo gravitacionalmente inclusive praticamente tudo o que se encontrava ao centro correspondente, e parece encurralar a consequente esquerda, ou nos seus pontos extremos, ou na mais desesperadora impotência.
Mas o estrago pode ser bem maior do que imaginam os novos (?) reacionários e suas claques desavisadas, em meio ao regozijo fugaz e inconsequente que suas vitórias, mais ou menos pirrônicas, proporcionam.
A deriva, tal como um tsunami, leva de roldão consigo as instituições conhecidas e tão lenta e arduamente cultivadas, o que ainda podia restar de sua legitimidade e, assim, suas frágeis, mas às vezes efetivas capacidades e recursos para lidar justamente com os males políticos, econômicos e sociais que nos afligem, e que certamente hão de se agravar e muito no futuro mais imediato.
Parafraseando o dito popular: estamos na selva (ou pântano) sem cachorro (e sem bússola, Baedeker, ou Google Maps).
Tal como o volume morto dos reservatórios esvaziados, as forças tectônicas que agora deslocam o mundo de seus eixos políticos e institucionais prévios sempre estiveram aí, antes, quem sabe recônditas e recolhidas, sob a superfície, a remoer seus ressentimentos, em sua relativa e cíclica marginalidade. Talvez intimidadas pela hegemonia enganosa dos democratas - mais ou menos convictos -, ou pelo autoconsciência, mais ou menos profunda, acerca da pusilanimidade e do caráter pernicioso de seus próprios sentimentos e ideias.
Faltava acordá-las e lhes permitir se assumir de público, reconhecerem-se a si mesmas em sua variedade e contingentes. Além, é claro, de agregar-lhes o assentimento tácito das grandes maiorias silenciosas, o entusiasmo das legiões de neófitos, a cumplicidade dos agentes institucionais irresponsáveis, e o adesismo dos oportunistas.
De fato, nada realmente assim tão novo sob o sol.
E no entanto...

Nenhum comentário:

Postar um comentário