domingo, 2 de fevereiro de 2014

Gastos discutíveis, censuras hipócritas e a força do hábito

Há quase duzentos anos, quando as ciências sociais contemporâneas mal engatinhavam, Tocqueville abria o seu genial Democracia na América com uma advertência que até hoje não me parece exatamente bem assimilada: ele nos falava da importância decisiva de algo muito simples e conhecido, mas, talvez por isso mesmo, muitas vezes menosprezado: o hábito. Não o pomposo habitus de Bourdieu (que virou hábito - ou vício? - mencionar em tantas teses e dissertações, à guisa de paradigma para sociologias que talvez não sobrevivam sem paradigma). Não. Tocqueville simplesmente falou-nos do hábito: essa coisa absolutamente banal, e no entanto decisiva para a compreensão de muito do que sucede quotidianamente em sociedade. 
Ora, que outra coisa mais banal e mais cansativa que, por exemplo, esse debate em torno dos gastos da comitiva presidencial em sua recente passagem por Lisboa? A que outra explicação recorrer para dar conta não só de uma eventual falta de sensibilidade política da equipe presidencial, de um lado, da histeria udenista da oposição e de certa mídia hidrófoba, por outro, mas acima de tudo, do profundo tédio que um debate como esse provoca? Precisamos recorrer a algo mais do que ao hábito para dar conta de algo tão irrelevante?
Por exemplo: insistir em explorar o evento vale mesmo à pena para o PSDB e seus parceiros?
Eu sei que estamos em ano de eleição presidencial, que as perspectivas para a oposição não são assim tão animadoras, e que líder de partido da mesma oposição nem sempre tem muito mais a fazer do que ficar fustigando todo e qualquer deslize do governo e sua base, ainda que o motivo, ou o pretexto, seja o mais ridículo. Faz parte do jogo.
Que certos veículos de mídia anti-petista explorem o assunto até as raias da exaustão é, também, se não exatamente justificável, ao menos previsível (já que há anos não fazem outra coisa; com os resultados eleitorais já conhecidos). Aqui certamente há ao menos uma dose excepcional de patologia em ação, mas o contexto geral é compreensível e comum (assunto para muitos outros posts...)
Mas que partidos eventualmente bem servidos de quadros - e que já deveriam estar mais do que acostumados a ser não só estilingue, mas também vidraça - se deixem levar por manobras de um udenismo tão rastaquera, é mesmo de desanimar.
Ou alguém ainda acredita, a essa altura do campeonato, que tentar fazer estardalhaço com tal tipo de conduta governamental mais ou menos desastrada ainda sirva para realmente: a) resguardar recursos públicos eventualmente desperdiçados (o que seria a justificativa ética do vozerio); b) tirar votos da candidata do governo, no caso a própria presidente (o que seria a justificativa partidária e eleitoral para o mesmo)? 
Não creio.
Não vejo nenhuma necessidade de enveredar por teorias conspiratórias ou maquiavelismos de botequim, nem, muito menos, por moralismos hipócritas - outros péssimos hábitos pseudo-intelectuais que gostamos de cultivar - para lidar com essa agenda. Acho que aqui - como de hábito - estamos diante exatamente disso mesmo: (maus) hábitos. Do governo, da oposição e da assistência, mais ou menos ávida e comprometida.
Mas quem disse que hábitos não podem ser modificados e têm sempre de ser mecanicamente "re-produzidos"?
Quem disse que a "agenda habitual" não é passível de renovação?
Certamente que sim.
Mas não vamos muito longe se menosprezarmos a força do hábito.

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