terça-feira, 7 de janeiro de 2014

À guisa de retrospectiva, ou novo capítulo da interminável série "elucubrações extemporâneas": violência e utopia

A violência é inerente à vida em sociedade. Mesmo quando não se manifesta de modo mais explícito e frequentemente indesejável, sob a forma de atos que envolvem agressões físicas e dano pessoal ou material, ela também pode ser percebida como constrangimento, coação, restrição efetiva ou presumida do comportamento, ameaça explícita ou suposta de sanção. Atuando, portanto, como mecanismo mais ou menos latente de repressão e causa de medo, insegurança e sentimento de exclusão ou risco mais ou menos iminente à integridade física ou moral da pessoa. 
A rigor, ela é simplesmente constitutiva da vida em todas e quaisquer das suas formas, das mais naturais - os documentários sobre o mundo animal que nos digam! - às mais "civilizadas", como diria o sociólogo Norbert Elias.  
A questão do debate sobre a violência é, portanto, e como sempre, muito mais a de que significados atribuímos às diferentes formas de violência, e sobre quais destas devem ou não ser toleradas e como. E levando-se em conta, desde logo, que algumas dessas formas serão forçosamente incorporadas, uma vez que são inerentes à vida social. 
Assim, o que chamamos - talvez com razão - de vida civilizada é apenas aquela em que as formas mais explícitas de violência física, mas também verbal, passam a ser exorcizadas pela Lei e/ou pelos costumes mais aceitos e devidamente socializados. E talvez, por isso mesmo, deixamos de considerar como violências - certamente de outra forma ou natureza - aqueles outros constrangimentos e limites, que podem, no entanto, nos ameaçar de forma ainda mais poderosa, ou incontrastável, deixando muito mais clara e evidente, talvez até de modo ainda mais desesperador, a nossa efetiva impotência individual, diante das grandes forças ao mesmo tempo humanas e inumanas da Sociedade, do Mercado, e do Estado.  
O primeiro e mais fundamental problema filosófico, ético e político colocado por essas circunstâncias não é, pois, propriamente reconhecer a existência onipresente de tal violência latente - ou "simbólica", como diria Bourdieu, ou "biopolítica", como diria Foucault, ou seja lá qual for a formulação mais ou menos "libertária" alternativa e favorita do leitor. Até aí, morreu Pierre, ou Michel. 
Não.
O mais importante é incorporar o fato de que se a violência pode ser tudo isso, ela não só é efetivamente onipresente, mas, portanto, inevitável. Ou seja: não há margem efetiva para utopias que não incorporem tais formas inevitáveis de violência como parte do seu pacote.
E é por isso que o realismo de Elias - mas também o de Bourdieu, de Foucault, e companhia ilimitada - não deixa de remeter a outro horizonte utópico, talvez apenas um pouco mais modesto: o de uma Sociedade, um Mercado, um Estado, onde as únicas formas de violência toleradas seriam justamente certas modalidades latentes e inevitáveis. E de preferência aquelas cujos efeitos perversos de geração de sentimentos mais ou menos difusos e imprecisos - mas não menos reais - de repressão, medo, insegurança, risco e impotência pudessem ser democraticamente, ou seja, mais ampla e igualitariamente, minorados.  
Uma certa "civilização", pois. Mesmo que este seja um mote que pareça atrair cada vez menos aderentes. Ou aderentes cada vez menos entusiasmados.

(Versão inicial de artigo que não cheguei a publicar - nada de surpreendente, pois - inspirado por certos eventos de 2013 - mas, infelizmente, válido para muitos outros contextos) 

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