sábado, 12 de março de 2016

O pesadelo das crises que se bifurcam

 O tempo se bifurca perpetuamente para inumeráveis futuros.
Num deles sou seu inimigo
(Jorge Luís Borges, “O jardim de caminhos que se bifurcam”)

Espero estar redondamente enganado, mas creio que infelizmente já foi em muito ultrapassado o que poderíamos chamar de ponto de não retorno da atual crise política.
Como, porém, sempre guardo uma reserva, não digo exatamente de esperança, mas sim talvez de pura teimosia e crença renitente no eterno retorno da vida e da rotina – não necessariamente nessa ordem –, vou aqui exercitar ao menos um leve esboço de imaginação para fora da crise (o que também não deixa de ser um modo, mesmo que muito frágil, de não me omitir).
A primeira coisa a fazer é admitir que uma das grandes dificuldades do momento é que não estamos propriamente diante somente de uma crise, mas sim, ao menos, de duas: a primeira, que um pouco a contragosto chamaria de crise de governabilidade, e a segunda, mais propriamente de radicalização política.
Separar claramente uma da outra, na prática, é impossível, eu sei. Mas a distinção analítica aqui é simplesmente fundamental. Pois enquanto a primeira ainda pode – pelo menos idealmente – ter alguma solução, talvez em médio prazo, a segunda me parece de fato insolúvel (ou, pelo menos, vai demorar muito a ser superada; e sabe-se lá a que custos). O mais trágico e desalentador, contudo, é que há grande possibilidade de que a falta de solução para a segunda também praticamente inviabilize a da primeira.
A primeira crise atual, a de governabilidade – nesse ponto não muito diferente de outras do gênero, em contextos democráticos contemporâneos –, se caracteriza pelo aprisionamento dos atores políticos do drama, mas em especial o principal, o governo federal, num circulo vicioso de crise econômica, impopularidade e perda de sustentação política, consequente paralisia decisória, continuidade e agravamento do contexto econômico e social, e assim, ciclicamente.
A essa altura do campeonato não faz mais diferença quem nasceu primeiro, se o ovo ou a galinha, mas sim como romper o círculo, se isso é possível.
É claro, porém, que para os atores mais engajados e mobilizados para a guerra, a questão, digamos, "hermenêutica", acerca não só da origem da crise, como também da atribuição de culpas e responsabilidades por ela, não é de modo algum secundária. Para estes isso é essencial, já que por força de seus engajamentos atribuem pesos estratégicos muito mais dramáticos – ou trágicos – à cada detalhe ou dimensão do processo. E assim, independentemente de seus objetivos ou intenções, reciclam e amplificam o grande enredo da crise e vários de seus elementos constituintes,
Daí chega-se à segunda crise e aos fatores complicadores da primeira, para além dos mecanismos inerentes a esta.
A segunda crise, obviamente, é a do já mencionado processo de radicalização. Há uma série de forças intervenientes aqui, e algumas delas, a rigor, são relativamente independentes tanto do primeiro processo, quanto de seus desdobramentos. Poderíamos mencionar o que muitos chamam de judicialização da política – mas que para mim soa às vezes muito mais como extra-politização do Judiciário –, a crise específica da grande mídia e sua partidarização, a autonomização das mobilizações sociais via redes, etc. No ponto em que estamos, porém, importa menos identificar causas e processos iniciais do que reconhecer o caráter autônomo e retroalimentador do próprio processo de radicalização. Aqui também há poderosos círculos viciosos em operação.
Por fim, com a interação entre a crise econômica e política institucionalizada, e a da radicalização ideológica, instala-se uma dinâmica perversa, onde as próprias possíveis soluções menos apaixonadas aventadas para a primeira parecem ser capazes apenas de alimentar a segunda. E cá estamos nós de novo enredados em outro círculo.
Com efeito, do lado da esquerda, não acredito que alguém possa alterar o convencimento que muitos ali demonstram de que o que está se passando é simplesmente a evolução sistemática de um golpe de Estado, articulado conjuntamente pelas oposições, grande parte da mídia, e ramificações do Poder Judiciário, do Ministério Público e setores da Polícia Federal. Do outro lado do espectro, à direita, a ação destes últimos agentes é recebida como sendo apenas parte do funcionamento natural de suas rotinas, ou, ao contrário, como uma espécie de cruzada moralizadora, mas que de qualquer modo estaria levando à investigação e ao desvelamento de esquemas de corrupção que, no que diz respeito exclusivamente ao PT e seus governos, revelariam, no entanto, um projeto de perpetuação do partido no poder, e mais grave, expondo o que chamam de seu "DNA autoritário e bolivarianista" intrínseco e incorrigível.
Não faz muito sentido, no momento, entrar no mérito de quanto há de possível verdade – ou paranoia, ou ainda, simples retórica irresponsável – em sedutoras construções narrativas como essas. Afinal, se há alguma coisa que não tem – nem costuma ter – qualquer eficácia prática no enfrentamento de um processo de radicalização política e ideológica, como o atual, é a possível percepção conceitual e histórica mais justa e precisa das razões e etapas do mesmo.
Mas diante da segunda crise e sua aceleração, soa simplesmente cômica, se não fosse trágica, a crença de que uma simples substituição de governo poderia hoje encaminhar alguma solução consistente e duradoura para a primeira crise, onde situamos o problema de governabilidade e o contexto econômico e social, mais propriamente dito. Aqueles que advogam tal rumo, não se sabe se com maiores ou menores doses de wishful thinking, ingenuidade ou de cinismo, lembram mais bombeiros desastrados que tentam apagar um incêndio jogando ainda mais gasolina no fogo. E o mesmo raciocínio é ainda mais válido se tal substituição vier embalada em algo ainda mais ambicioso e temerário, mesmo que aparentemente mais técnico e apartidário, como uma reforma mais ampla e a toque de caixa do próprio sistema de governo.
A deposição da atual presidente, ou sua neutralização, ainda que por qualquer caminho razoavelmente constitucional – e somente assim – poderia, talvez, trazer até algum alívio momentâneo a certos mercados, e algum frágil sentimento conjuntural de normalidade ou de correção de rumos. Mas no estágio atual, e com esse estado de ânimos que estamos testemunhando, dificilmente teria vida longa e eficaz. Em breve muito provavelmente assistiríamos o novo governo paralisado de modo muito similar ao que vemos hoje e a radicalização agravada. Certamente que não exatamente pelos mesmos personagens ou fatores, mas outros, igualmente implacáveis. O problema maior, portanto, é que esse tipo de falsa solução da primeira crise somente acirraria ainda mais a segunda.
Por outro lado, é bem provável que a manutenção do atual governo, no mesmo diapasão que o acompanha desde o seu reinício formal, possa servir também, no contexto atual, apenas para agravar ainda mais ambas as crises. De fato, para além de idiossincrasias próprias ao primeiro, nada indica que as forças inconformadas desde 2014 com a reeleição de Dilma e a continuidade da administração petista irão se acalmar ou deixar de pressionar, pelo menos enquanto não houver algo que considerem uma significativa mudança.
Em favor de uma solução (ou milagre) para a crise maior, com a manutenção e/ou iniciativa do governo atual, restaria "apenas" o fator constitucional e institucional chave de que, a despeito de todas as tensões e insatisfações profundas que mesmo assim fatalmente sobrevirão, neste ou naquele setor, de um modo ou de outro se poderá assim resguardar as principais instituições do regime. E aí sim, os futuros governos, sejam lá de quem e quando for, terão chances um pouco maiores de exercer minimamente os seus mandatos, e tentar administrar os problemas do país, contando para isso, talvez, com um pouco mais de sustentação e aquiescência.
Ou seja: a solução menos simples e menos crível imediatamente – mas talvez a mais eficaz a médio e longo prazo – para a primeira crise, poderia ser a que, de um modo ou de outro, fosse buscada com o atual governo eleito, e não contra ele, ou à sua revelia.
De qualquer modo, a única saída efetiva para essa crise seria, pois, o rompimento, em algum ponto, do primeiro círculo vicioso, o da crise econômica e político-institucional. Já que o segundo, o da radicalização, parece insuperável.
Infelizmente, o que mais assusta, entretanto, é que dada a dinâmica própria, e a essa altura relativamente autônoma, assumida por essa crise de radicalização, todos os futuros movimentos de cada um dos protagonistas do drama tenderão somente a reafirmar e a fortalecer cada uma das convicções antagônicas de parte a parte, e as "éticas" a elas correspondentes.
De modo, pois, que o mais provável é que este pesadelo, de crises que se bifurcam – e tornam a se cruzar –, apesar de já tão longo e tedioso, esteja na verdade apenas começando.
Resta saber que caminhos se abrirão para nós e com que mapas ou bússolas poderemos nos conduzir nesse labirinto.

2 comentários:

  1. A considerável assimetria que se desenha entre as duas partes ( instituições começam a apontar contra um governo politicamente enfraquecido;o desemprego crescente e a mídia em bombardeio total) deve implicar na impossibilidade de negociação. Se não surgir, se não for fabricado um Alexandre Magno que desate o nó górdio da crise com espadadas na lei -a pior alternativa , a tendência, me parece, é o Congresso enveredar pelo impeachment que, como você apontou, pode apenas adiar uma crise maior. Este governo, que ainda tem apoio nos movimentos sociais, e pouco mais ,seria substituído por outro também fraco, cujos primeiros passos após uma " faxina midiática " seria desconstruir ganhos obtidos em rendimento, trabalho, por " inflacionarios, insustentáveis, in qualquer coisa ". Para atender a seus apoiadores. Movimentos sociais seriam atacados. A direitona braba mais à vontade, anulando gays e sindicalistas. Se não voltarmos ao crescimento.. .Mais crise. E mais adiante não vou. Abraços. Paulo Cerqueira Lima

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    1. Pois é, meu caro Paulo. Esse é um dos muitos cenários possíveis. Poderíamos aqui pensar em outros. Mas todos os que me vem à mente são tão desagradáveis quanto este. Como disse no início do post, espero que estejamos todos enganados. Mas pelo menos ainda podemos trocar idéias livremente com os amigos. O que não deixa de ser uma forma de revalorizar o muito que este tão maltratado e menosprezado regime nos permite. Grande abraço.

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