domingo, 13 de agosto de 2017

O bode (rides again)

Como era de se esperar, tudo leva a crer que a introdução dessa excrescência apelidada de "distritão" na atual reforma política – ao que parece, somente para as próximas eleições (a partir de 2022 utilizaríamos uma versão tupiniquim de sistema misto alemão) – não passa de picaretagem casuística da grossa. Mas também não se pode excluir a possibilidade de se tratar, mais uma vez, da velha artimanha de se colocar o bode na sala. Na republiqueta dos neo-golpistas tudo é possível.
Para quem ainda não sabe, o “distritão” seria aquele sistema em que o eleitor vota em candidatos individuais para as Câmaras e Assembleias, e se elegem os mais votados individualmente. Ponto. Ao contrário do que ocorre hoje, no sistema proporcional de lista aberta, porém, neste novo formato os candidatos disputam e se elegem independentemente de seus partidos e, em grande medida, contra eles. Ou seja: depois de se discutir durante anos diversas outras formas de reforma das nossas eleições o Congresso pode estar se preparando para ratificar justamente a provavelmente pior delas. Sinal dos tempos. 
Seja como for, há muito estou convencido de que reforma política é como aquele velho clímax de filme de aventura em que se está diante de um evento ou passagem que só ocorre ou se abre de tempos em tempos, de acordo com a incidência dos raios do sol em um determinado ângulo, e na estação do ano pré-determinada, ou conforme conjunções astrais muito especiais, e que tentar levá-la adiante fora de tais momentos é inviável ou muito perigoso.
O momento atual, então, que talvez como nenhum outro, há muito tempo, pode nos levar a sonhar ardentemente como uma reforma política salvadora, e que nos livre do interminável filme de horror em que fomos inseridos há alguns anos, é certamente um dos menos propícios e recomendáveis para se tentar algo do gênero.
Primeiro, porque de um ponto de vista puramente técnico – se é que tal coisa é possível em matéria de política – poucas tarefas são mais ambiciosas, complicadas e arriscadas do que tentar reformar um sistema de representação. São tantos os fatores a se levar em conta, tantos objetivos possivelmente contraditórios que se tem de conciliar e articular, e tão controverso o capital de conhecimento histórico e teórico que se necessita mobilizar para não se correr o risco de reinventar rodas inadequadas, ou simplesmente quadradas, que não raro a necessária prudência do especialista acaba se convertendo em desânimo, inação e desistência.
Mas é no próprio terreno da política real que se encontram os maiores obstáculos a uma reforma política efetiva e produtiva. E nem sempre é de se lamentar.
Os obstáculos da política à sua auto-reforma, ou ao menos do seu crucial sistema de representação, se referem, obviamente, ao fato de que é muito difícil se chegar a algum consenso sobre o que e como reformar, dada a mais do que provável diversidade e antagonismo de interesses no desenho das regras do sistema, em função da pluralidade e variedade de formas e condições de disputa política concreta na sociedade. Quanto mais fragmentada, diversificada e desigual a realidade social, econômica, ideológica e regional a ser representada pelo sistema político, mais difícil o acordo em torno de regras novas que certamente poderão abrir novas perspectivas de oportunidades para certos atores do jogo, ao mesmo tempo em que podem representar grandes ameaças aos recursos e posições de outros. Partindo do pressuposto razoável de que nenhum ator político minimamente racional vai apoiar mudanças de regras que possam vir a prejudicá-lo em futuro mais ou menos imediato – ou que em caso de séria dúvida e considerável incerteza tenda a trocar o conhecido pelo incógnito – é de se imaginar que em contexto de grande diversidade e pluralidade de forças políticas, dificilmente se poderá superar impasses e vetos a qualquer reforma digna desse nome, sem a intervenção de algum ator, ou atores estratégicos – como, eventualmente, um líder de Executivo popular, à frente de maiorias partidárias fortes – que possam articular e negociar termos e apoios em direção a um projeto minimamente consensual e majoritário. Não precisamos refletir muito para perceber que se a primeira condição problemática – a da fragmentação e do pluralismo – se encontra fortemente presente em nosso país, o segundo pré-requisito, o de solução – dependente da agência de uma forte liderança política e institucional popular – parece ao menos um "pouco" prejudicado no contexto atual.
Digo, contudo, que nem sempre é de se lamentar tal tipo de impasse porque, assim como tenho, tal como muitos colegas, as minhas preferências em matéria de reforma, tenho ainda mais simpatia por várias formas de pluralismo, e por equilíbrios relativos de poder em regimes razoavelmente democráticos: daqueles que dificultam ações apressadas, temerárias (com duplo sentido, por favor!) e danos irremediáveis. Também desconfio muito dos "rolos compressores", das "administrações extraordinárias", de fanatismos reformistas ou revolucionários, de vários matizes, e simplesmente abomino "regimes de exceção", etc. E na tormenta que estamos atravessando, com esses "timoneiros" a bordo, melhor nem pensar por quais rotas seremos levados a navegar.
Ou seja: certamente acho que nosso sistema eleitoral precisa de reformas e, se possível, rapidamente (mesmo admitindo, porém, que não existe reforma ou panaceia institucional capaz de, por si só, nos livrar da crise atual; como diz o velho ditado, "the hole is far...").
Mas de qualquer maneira, se for para deixar o bode na sala, melhor nem deixar ele entrar.

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