Como era de se esperar,
tudo leva a crer que a introdução dessa excrescência apelidada de
"distritão" na atual reforma política – ao que parece, somente para
as próximas eleições (a partir de 2022 utilizaríamos uma versão tupiniquim de
sistema misto alemão) – não passa de picaretagem casuística da grossa. Mas também
não se pode excluir a possibilidade de se tratar, mais uma vez, da velha
artimanha de se colocar o bode na sala. Na republiqueta dos neo-golpistas tudo
é possível.
Para quem ainda não sabe,
o “distritão” seria aquele sistema em que o eleitor vota em candidatos
individuais para as Câmaras e Assembleias, e se elegem os mais votados
individualmente. Ponto. Ao contrário do que ocorre hoje, no sistema
proporcional de lista aberta, porém, neste novo formato os candidatos disputam
e se elegem independentemente de seus partidos e, em grande medida, contra
eles. Ou seja: depois de se discutir durante anos diversas outras formas de
reforma das nossas eleições o Congresso pode estar se preparando para ratificar
justamente a provavelmente pior delas. Sinal dos tempos.
Seja como for, há muito
estou convencido de que reforma política é como aquele velho clímax de filme de
aventura em que se está diante de um evento ou passagem que só ocorre ou se
abre de tempos em tempos, de acordo com a incidência dos raios do sol em um
determinado ângulo, e na estação do ano pré-determinada, ou conforme conjunções
astrais muito especiais, e que tentar levá-la adiante fora de tais momentos é
inviável ou muito perigoso.
O momento atual, então,
que talvez como nenhum outro, há muito tempo, pode nos levar a sonhar
ardentemente como uma reforma política salvadora, e que nos livre do
interminável filme de horror em que fomos inseridos há alguns anos, é
certamente um dos menos propícios e recomendáveis para se tentar algo do
gênero.
Primeiro, porque de um ponto
de vista puramente técnico – se é que tal coisa é possível em matéria de
política – poucas tarefas são mais ambiciosas, complicadas e arriscadas do que
tentar reformar um sistema de representação. São tantos os fatores a se levar
em conta, tantos objetivos possivelmente contraditórios que se tem de conciliar
e articular, e tão controverso o capital de conhecimento histórico e teórico
que se necessita mobilizar para não se correr o risco de reinventar rodas
inadequadas, ou simplesmente quadradas, que não raro a necessária prudência do
especialista acaba se convertendo em desânimo, inação e desistência.
Mas é no próprio terreno
da política real que se encontram os maiores obstáculos a uma reforma política
efetiva e produtiva. E nem sempre é de se lamentar.
Os obstáculos da política
à sua auto-reforma, ou ao menos do seu crucial sistema de representação, se
referem, obviamente, ao fato de que é muito difícil se chegar a algum consenso
sobre o que e como reformar, dada a mais do que provável diversidade e antagonismo
de interesses no desenho das regras do sistema, em função da pluralidade e
variedade de formas e condições de disputa política concreta na sociedade.
Quanto mais fragmentada, diversificada e desigual a realidade social,
econômica, ideológica e regional a ser representada pelo sistema político, mais
difícil o acordo em torno de regras novas que certamente poderão abrir novas
perspectivas de oportunidades para certos atores do jogo, ao mesmo tempo em que
podem representar grandes ameaças aos recursos e posições de outros. Partindo
do pressuposto razoável de que nenhum ator político minimamente racional vai
apoiar mudanças de regras que possam vir a prejudicá-lo em futuro mais ou menos
imediato – ou que em caso de séria dúvida e considerável incerteza tenda a
trocar o conhecido pelo incógnito – é de se imaginar que em contexto de grande
diversidade e pluralidade de forças políticas, dificilmente se poderá superar
impasses e vetos a qualquer reforma digna desse nome, sem a intervenção de
algum ator, ou atores estratégicos – como, eventualmente, um líder de Executivo
popular, à frente de maiorias partidárias fortes – que possam articular e
negociar termos e apoios em direção a um projeto minimamente consensual e
majoritário. Não precisamos refletir muito para perceber que se a primeira
condição problemática – a da fragmentação e do pluralismo – se encontra
fortemente presente em nosso país, o segundo pré-requisito, o de solução – dependente
da agência de uma forte liderança política e institucional popular – parece ao
menos um "pouco" prejudicado no contexto atual.
Digo, contudo, que nem
sempre é de se lamentar tal tipo de impasse porque, assim como tenho, tal como
muitos colegas, as minhas preferências em matéria de reforma, tenho ainda mais
simpatia por várias formas de pluralismo, e por equilíbrios relativos de poder
em regimes razoavelmente democráticos: daqueles que dificultam ações
apressadas, temerárias (com duplo sentido, por favor!) e danos irremediáveis.
Também desconfio muito dos "rolos compressores", das
"administrações extraordinárias", de fanatismos reformistas ou
revolucionários, de vários matizes, e simplesmente abomino "regimes de
exceção", etc. E na tormenta que estamos atravessando, com esses
"timoneiros" a bordo, melhor nem pensar por quais rotas seremos
levados a navegar.
Ou seja: certamente acho
que nosso sistema eleitoral precisa de reformas e, se possível, rapidamente
(mesmo admitindo, porém, que não existe reforma ou panaceia institucional capaz
de, por si só, nos livrar da crise atual; como diz o velho ditado, "the
hole is far...").
Mas de qualquer maneira, se for para deixar o bode na
sala, melhor nem deixar ele entrar.
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