sábado, 26 de maio de 2018

Do balcão à chantagem

É curioso o debate em curso sobre a natureza e a legitimidade do movimento dos caminhoneiros, sobre a sua organização e composição: são motoristas "autônomos" ou "massa de manobra de empresários oportunistas"? Trata-se enfim de uma greve ou de um locaute? Como se tudo em jogo se resumisse, para além de tecnicalidades jurídicas sobre greves e sua legalidade, a uma só questão moral: em função de uma ou outra característica, deve-se apoiar ou condenar o movimento?
A que ponto chegamos em matéria de moralismo e de patrulhismo....
Eu que sou um sujeito profundamente desinformado, confesso que não faço a menor idéia sobre tal natureza e composição do movimento ou suas proporções internas. Nem faço tanta questão de saber. Para mim já é bastante desafiador observar e refletir sobre a eficácia da mobilização, seus impactos sobre a população, seus desdobramentos e significados políticos, mais ou menos imediatos.
Não que o acesso a informações um pouco mais profundas e fidedignas sobre o caso seja algo desprezível. De fato, o caráter aparentemente restrito das reivindicações – em especial a isenção dos impostos sobre o diesel – poderia nos levar a facilmente endossar uma visão unilateral do processo. Mas aí pode bem ser o caso de estarmos nos deixando levar não só pelo maniqueísmo geral reinante, mas também pelo oficialismo e pelo caráter unidimensional da cobertura midiática contemporânea padrão, que, ao invés de explorar a realidade do setor e das condições de trabalho dos caminhoneiros, e toda a sua possível pauta, muitas vezes (com raras exceções) prefere centrar sua atenção naqueles aspectos, ou detalhes em que se pode melhor explorar e repercutir as reações do governo e das demais instâncias de poder envolvidas – e, é claro, verbalizar as preocupações mais imediatas dessa entidade nada metafísica que chamamos de “mercado”, assim como dos presumíveis impactos gerais do movimento na já combalida conjuntura econômica nacional.
Mas aonde se consegue informação consistente e confiável hoje, sobre qualquer tema, mais ou menos urgente ou polêmico? Parafraseando o mote da hora: como poderemos nos abastecer de insumo tão essencial? (Admitamos que aqui a carência possa ser tão grave quanto em vários outros setores...).
Não. É preciso aprender a se guiar nessa floresta sem bússola (ou Google Maps).
Por isso, partindo do pressuposto banal de que é absolutamente corriqueiro que em "sociedades abertas" e em regimes (ao menos aparentemente) democráticos, classes, corporações e grupos de interesse se organizem e dêem largas a seus interesses e ambições – mais ou menos míopes ou predatórios –, com os meios à sua disposição, e cabendo, afinal, às instituições, ao próprio mercado político, e à virtude política dos atores lidar e, se possível, limitar os eventuais efeitos danosos de tais miopias, interesses e ambições inevitáveis, abro mão de qualquer juízo de valor sobre a greve (ou locaute) – como se isso fizesse, realmente, alguma diferença –, e me concentro nos seguintes pontos, mais ou menos óbvios do enredo: 1) seria simplesmente ridícula, se não fosse trágica, a impressionante fragilidade dos sistemas de abastecimento de tantos itens essências ao pleno funcionamento de serviços básicos em nossas cidades e campos (tão ou mais trágico saber que graças à nova “ordem”, tão cedo não teremos qualquer condição efetiva de lidar com esse e outros graves problemas e déficits infra-estruturais); 2) por outro lado, sejam quais forem os seus meandros, lideranças, interesses e recursos envolvidos, parecem ser dignas de nota as capacidades de organização, comunicação e mobilização da categoria; numa época em que se faz tanta apologia romântica do espontaneísmo e da “autenticidade” na atuação política coletiva, valeria à pena conhecer um pouco mais sobre como se deu a preparação de tamanho nó nas nossas estradas e vias de acesso; 3) quanto às manifestações mais ou menos politizadas e radicalizadas, do próprio movimento, ou de sua recepção, à direita e à esquerda, nada de muito novo (pelo contrário); ainda mais diante da atual polarização hegemônica e da nova "normalidade"; 4) finalmente, não vou me ater às várias dimensões da atuação do governo federal e suas instituições – leia-se a Petrobrás e a base da Situação no Congresso – antes e, (por enquanto) durante o processo. Não tenho mais paciência para repetir o que quase todo mundo já sabe (mesmo que não admita) sobre essa “administração” e seus “princípios”. Quero apenas chamar a atenção para o fato igualmente óbvio de que não pode ser surpresa para ninguém que uma coalizão notável pelo modo como escancarou as portas e os balcões do Planalto para todo o tipo de lobby, em troca de apoios, agora se veja forçada, em momento de crise, a abrir mão de fontes de arrecadação significativas, acuada – se não exatamente chantageada – pelo primeiro grupo, ou grupos de interesse, capaz(es) de mobilização, fora dos corredores e canais oficiais, e aos quais seguramente menosprezou em sua soberba e arrogância típicas (ambas cultivadas generosamente em dois anos de impunidade; tanto política quanto jurídica).
Resta esperar pelos próximos capítulos e seus desdobramentos. E inclusive saber que precedente pode ter sido aberto pelo atual entrevero dos caminhoneiros com os síndicos do nosso condomínio.

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